HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
Construtoras lucram milhões
em ajustes diretos e concursos
Construtoras de Braga que são acionistas da Agere ganham 71,66% dos concursos públicos e 31,98% dos ajustes diretos feitos pela empresa desde 2009
As construtoras
bracarenses ABB e DST encaixaram mais de 23,6 milhões de euros em 21
contratos públicos e ajustes diretos feitos pela Agere (empresa que gere
as águas de Braga) e pela Braval (multimunicipal de resíduos do Baixo
Cávado) entre 2009 e 2013. As adjudicações seriam incontestáveis não
fosse um pormenor: as construtoras são acionistas destas empresas que se
mantêm, no entanto, maioritariamente públicas. Pelas dúvidas levantadas
à gestão do anterior executivo, o novo presidente da Câmara Municipal
de Braga, Ricardo Rio, garantiu ao DN que já avançou para uma "auditoria
financeira profunda" à Agere, bem como a outras empresas do município.
Ao
serem acionistas e terem assento no Conselho de Administração da Agere
(direta ou indiretamente), estas construtoras (ABB e DST) levantam um
problema ético quando ganham um contrato: definem os termos e decidem a
adjudicação em causa própria. Isto com a particularidade de a maioria do
capital que paga esses contratos vir de fundos públicos.
Especialistas
na área do direito público e administrativo contactados pelo DN garantem
que a questão levanta no mínimo problemas éticos e também dúvidas no
plano legal, algo que tanto privados como a autarquia de Braga negam.
Vamos
à história. A ABB (Alexandre Barbosa Borges, S.A.), a DST (Domingos da
Silva Teixeira, S.A.) e a R&N (Bragaparques) compraram através de um
consórcio (Geswater) 49% da empresa municipal que gere as águas e os
resíduos de Braga, a Agere. Cada uma ficou com 33,3% dos 49%, mas a
autarquia ficou ainda assim em maioria perante os privados, mantendo 51%
do capital.
A partir do momento em que surgiu esta ligação, o
escrutínio sobre os contratos entre esta empresa e os acionistas e entre
a empresa e a Câmara Municipal de Braga - gerida pelo socialista
Mesquita Machado durante o período em questão - aumentou. O Tribunal de
Contas já foi chamado a intervir em concursos ganhos pelas próprias
acionistas da empresa e não só: ainda a 1 de abril de 2013 recusou um
visto prévio a um contrato entre a autarquia e a empresa.
Apesar
dos problemas levantados, nos últimos cinco anos a ABB e a DST, bem como
a Aquapor (consórcio ABB e DST), encaixaram 10,8 milhões de euros em 13
contratos com a Agere, que vão desde uma "substituição de Guarda
Corpos" por 20 923 euros em ajuste direto até um concurso público no
valor de 4,5 milhões de euros para a "execução da ETAR do Sistema
Ruães".
Mas a Agere é ainda detentora de 79% da Braval (tendo os
acionistas privados 38,7% da Braval através da Geswater). Como é óbvio,
aqui surgem os mesmos problemas éticos, o que faz o "bolo" engrossar
para perto de 24 milhões de euros.
As duas empresas (ABB e DST)
conseguiram obter nos mesmos cinco anos - sozinhas ou em consórcio -
12,8 milhões de euros em contratos com a Braval, dos quais se destacam
um ajuste direto de 11,2 milhões de euros para "construção de estação de
tratamento de resíduos" e um concurso público de 1,3 milhões de euros a
propósito de uma empreitada de construção de Aterro Sanitário da
Braval.
No concurso público, a concorrência estaria garantida,
havendo um único senão: a entidade que ganhou participou não só na
definição dos termos do concurso como na decisão de se escolher a si
própria. Ainda, claro, que a autarquia tenha sempre a decisão final
enquanto acionista maioritário.
Todos estes ajustes diretos e
concursos públicos foram durante a gestão de Mesquita Machado, enquanto
presidente da Câmara de Braga (por inerência presidente da Agere). O
atual presidente da Câmara Municipal de Braga, Ricardo Rio, admitiu ao
DN que durante os anos em que ocorreram estes procedimentos concursais
"duas grandes áreas estratégicas de gestão [...], Recursos Humanos e
Compras [...], não estavam na alçada do município".
O próprio
presidente da DST (falando em nome dos operadores privados da Geswater),
José Teixeira, confidenciou ao DN que - pela sensibilidade que a
questão exige - já foi pedido "que no novo mandato essas áreas fiquem
com o administrador da autarquia". José Teixeira compreende que sejam
levantadas questões de alegado favorecimento, mas garante que as mesmas
não existem. Por isso mesmo - e para "evitar o conflito de interesses
por um lado" e "para não sermos castigados por via de termos comprado
uma participação"- quis que esses pelouros ficassem, a partir da agora,
nas mãos do município. Ou seja: antes, era o administrador dos privados
que geria as compras e, portanto, os contratos feitos aos acionistas e
aos restantes operadores do mercado.
Uma questão ética ou legal?
O
especialista em direito administrativo e contratação pública Tiago
Caiado Guerreiro defende que uma empresa ao ser acionista de uma empresa
mista e se contratar a si própria por ajuste direto poderá estar a
fazer uso de "um mecanismo legal, com a perspetiva de beneficiar o
privado", e aí, "se os preços não forem competitivos e de mercado,
estamos perante uma situação que prejudica o interesse público".
O
especialista complementa que "se forem dinheiros públicos mal geridos,
ou estamos perante uma situação de fraude da lei ou de uma situação
moralmente repreensível". Para precaver estas situações, Tiago Caiado
Guerreiro defende que os ajustes diretos não deveriam ser feitos com
dinheiros públicos. "Só concordo com ajustes diretos numa situação muito
específica: um quadro de um grande pintor ou um medicamento único que
seja necessário para salvar uma pessoa. De outra forma, é um
procedimento que propicia questões eticamente e até legalmente
questionáveis."
Um especialista de direito público de um
escritório de advogados de Lisboa (que não se quis identificar por
razões profissionais) diz que neste caso estamos perante uma situação de
"ilegalidade", uma vez que "quem define as regras dos concursos
processuais não pode ser contratada". E acrescenta: "Esta situação vai
contra o Código dos Contratos Públicos nos impedimentos, bem como o
Direito da União Europeia, pois é um caso que viola dois princípios
basilares da contratação pública: o princípio da concorrência e o
princípio da transparência."
Opinião diferente têm, naturalmente, a
Câmara de Braga e o presidente da DST. O atual presidente, Ricardo Rio,
garantiu ao DN que "não existe qualquer impedimento legal no ato de
contratação do próprio acionista". Por outro lado, quanto ao facto de
ganhar quem define as regras, Ricardo Rio explica que esta é "uma
questão ética e de profissionalismo de quem exerceu e exerce funções na
direção da empresa em causa" e, aí, garante: "A Agere tem profissionais
[...] que representam a salvaguarda e a garantia da isenção necessária
nestes procedimentos."
O presidente da DST, José Teixeira, afirma
que a empresa "atua sempre de acordo com a lei". "Nós seguimos a lei. O
Código de Contratação Pública permite que os acionistas sejam
contratados. Se não gostam da lei que a alterem na Assembleia da
República. Eu também tenho críticas a este código. Agora, se a lei não
me permitisse concorrer à Agere, nunca tinha entrado no capital da
empresa. Nós jogamos com as regras que existem", justifica.
71,66% dos concursos
A
contestação de outras entidades - com denúncias que já passaram pelo
Tribunal de Contas - surge porque a DST e a ABB são, de facto, entidades
adjudicatárias com grande proeminência na lista de contratações da
Agere, sendo mesmo dos principais fornecedores.
E os dados
facultados pela autarquia de Braga ao DN ainda mostram uma realidade
mais preponderante do que o site Base.gov. .pt. Quanto a ajustes
diretos, desde 2009, e de acordo com dados da autarquia, as duas
construtoras totalizam 31,98% do total dos ajustes diretos feitos pela
Agere a fornecedores (ABB 13,29%, DST 13,48% e Luságua 5,29%). Isto
significa que, num total de 7,4 milhões de euros gastos em ajustes
diretos, 2,38 milhões foram para estas construtoras.
Nos
concursos, a percentagem ainda aumenta: 71,66% dos concursos públicos
são ganhos pela ABB e pela DST. Neste caso, dos 38,4 milhões em ajustes
diretos e concursos públicos feitos pela Agere, 22,24 milhões em
contratos foram ganhos por estas duas construtoras.
Estes dados
fornecidos pela autarquia ainda aumentariam os 24 milhões contabilizados
pelo DN (entre Braval e Agere) para 35 milhões de euros encaixados por
estas construtoras. No entanto, o DN cingiu-se, na sua análise, aos
contratos aos quais teve acesso através do site governamental que
escrutina estas situações (www.base.gov.pt).
Ao DN, José Teixeira
justifica o facto de ser um dos principais fornecedores: "Não ganhamos
por sermos acionistas. Ganhamos porque somos de Braga, somos
competitivos e oferecemos os melhores contratos para a entidade." José
Teixeira entende que a sua empresa não pode ser prejudicada por ser
acionista, mas até admite no futuro - se for necessário - fazer um
"jejum" aos ajustes da Agere, que comparativamente aos 280 milhões
faturados por ano pela empresa são peanuts.
* Jornalismo de Investigação é isto, claro e contundente.
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