CASARAM-SE E FORAM
FELIZES PARA SEMPRE
"Um homem pode viver feliz com qualquer mulher desde que não a ame" (Oscar Wilde)
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O amor e a felicidade têm uma relação dificil, recheada
de euforias, sobressaltos, momentos de sintonia entre os dois
sentimentos, tempos de clivagem e de grande sofrimento.
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Mas é uma relação desigual: perder um amor gera infelicidade, ser feliz não implica necessariamente amar e ser amado.
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Haverá um conceito absoluto de felicidade? Uma espécie de definição universal, transversal a todas as culturas?
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A felicidade não se vê, sente-se, é uma construção de cada um de nós, baseada na conjugação do exterior com o interior.
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Podemos ser felizes se o exterior fizer sentido, mas também o podemos ser com o interior a bastar-se a si próprio.
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A felicidade pode ser agressiva para os outros. O
narcisista é feliz, adora-se, mas a sua capacidade de se relacionar é
muito limitada - quando olha para fora só se vê a si próprio...
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Olhar para trás e dizer "fui feliz", "fui infeliz"
implica a sobreposição de falsas e verdadeiras memórias, conjugadas no
momento da avaliação. Somos pouco consistentes quando pensamos na
felicidade, somos mais verdadeiros quando a sentimos.
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A felicidade é menos objetivável do que a infelicidade.
Sentimo-nos felizes, mas conseguimos descrever em pormenor porque somos
infelizes. Podemos estar tristes e felizes: a tristeza pode dar
bem-estar e equilíbrio, mas não pode ser desencadeada pela rutura
amorosa; quase ninguém se sente feliz por perder o objeto amado.
Aliviado, por vezes sim, feliz raramente.
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Os resultados do inquérito que o Expresso publica nesta
Revista são uma grande desilusão para os partidários da relação entre o
amor e a felicidade. Afinal, o amor só é importante para 8,7% dos
inquiridos, mas ter saúde dá felicidade a 88% da amostra.
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Mas numa outra pergunta sobre a relação entre a felicidade e uma relação estável, 67% dizem sentir-se felizes ou muito felizes.
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A estatística serve para justificarmos quase tudo o que
queremos provar; se enviesarmos estes resultados, poderemos assumir
que, para os portugueses, relação estável não é coincidente com amor. No
entanto, a perceção que temos nos tempos atuais é a de que o amor dá
muita felicidade e as relações estáveis estão cheias de amor.
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Casamentos e divórcios
Cresce todos os anos (a ligeira redução desde 2007 não tem em conta os casais em união de facto, que têm vindo a crescer) o número de divórcios. Um casal que se constitua agora tem 50% de hipóteses de se divorciar. Lá vem a estatística outra vez, mas neste caso os resultados são consistentes ao longo dos últimos 30 anos, quase sempre aumentando todos os anos.
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A correlação clássica entre estes valores e a importância do amor é conhecida: quando o sentimento de infelicidade conjugal é duradouro, as pessoas separam-se e tentam arranjar uma nova relação.
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Os casamentos que acabam em divórcio têm em média uma
duração de 15 anos. É o tempo que demora a ter uma relativa certeza de
que a felicidade com aquela pessoa já não é possível. A parte final
deste tempo é passada a tentar distinguir a zanga da falta de amor, o
que nem sempre é fácil.
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Mas talvez seja importante, antes de outros devaneios sobre o tema, perguntarmo-nos o que é um casal:
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- Duas almas que decidem confundir paixão e amor com
projeto de vida? Parece que a maior parte dos portugueses não resiste a
juntar-se, idealizando que o mesmo teto dá maior consistência ao
sentimento.
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- Duas pessoas que imaginam que se viverem juntas estão
mais tempo uma com a outra? Se trabalharem no mesmo local ainda melhor,
as discussões têm mais sumo.
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- Uma espécie de loucura a dois que mais cedo ou mais
tarde acaba? Enquanto dura, a felicidade é extrema. Provavelmente, a
amostra do inquérito não apanhou nenhum destes felizardos.
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- A crença profunda de que a felicidade é a
conjugalidade? Cada um acredita no que quer. As crenças, até prova em
contrário, contribuem para a harmonia interior.
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- Uma vida sexual frequente e satisfatória? Os homens
que estão a ler este texto têm razão para ficarem preocupados. Numa
série de circunstâncias que deixam os inquiridos mais felizes, o sexo
aparece em primeiro lugar para 31,4% dos homens e apenas para 9,5% das
mulheres. Finalmente começamos a compreender algumas mudanças na nossa
sociedade...
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O casamento sempre foi uma instituição estável,
destinada a facilitar a perpetuação da espécie, procurando criar um
ambiente protetor para as crianças e para os adultos (não é por acaso
que 42% dos homens e 61% das mulheres dizem que o dia mais feliz da
vida deles foi aquele em que nasceram os filhos, enquanto o dia em que
se casaram foi-o apenas para 13% dos homens e 11% das mulheres). Nem
sempre o conseguiu ser, os Estados foram sendo obrigados a intervir para
assegurar os limites da dignidade humana, sobretudo das mulheres e das
crianças.
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Mas os sentimentos que davam coesão á familia, a
amizade/amor e a solidariedade, eram temporalmente ilimitados - até que a
morte os separe.
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Hoje, não só nos juntamos por amor, de preferência
apaixonados, como procuramos a todo o custo que esse amor se prolongue
no tempo, em cada relação. E tornámos o casamento muito mais complexo -
não significa complicado -, mas fizemo-lo na pior altura da nossa
sociedade.
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Casais que são queijos suíços
Estamos cada vez mais abertos ao exterior: a maior
parte da nossa vida é passada em contacto com pessoas estranhas à
família e ao casal. A internet e as redes sociais poem-nos à distância
de um bit de alguém do outro lado do mundo ou da cidade em que
habitamos.
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Queremos o amor como quase ingrediente único dos
casamentos, mas - desculpem-me a comparação - transformámos os casais
numa espécie de queijos suíços, cheios de buracos e permeáveis às
correntes de ar...
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Queremos tudo na mesma pessoa: amante, sempre
disponível e criativa, amiga para as horas boas e más, mãe ou pai
solidários. Mesmo no auge da tensão conjugal, suportamos mal o
desinvestimento temporário na relação. "Assim não sou feliz, não sei se
consigo continuar."
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Conseguimos ter tudo isto por vezes. Somos pouco
tolerantes quando alguma coisa falha. Pomos no outro uma carga tal que a
capacidade de energia da relação não aguenta.
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Ao sermos assim, estamos também a defender a nossa
saúde: está mais que provado que as pessoas felizes são mais saudáveis,
têm menos enfartes do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais. Os
divorciados morrem mais cedo.
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Encontrar o chamado" amor da minha vida" não é muito
difícil - quem feio ama bonito lhe parece... Difícil é manter a beleza
ao longo do tempo, difícil é gostar de alguém e não lhe atribuir as
culpas dos males que nos acontecem, difícil é não criticar quem se
conhece tão bem, difícil é manter a atração ao longo do tempo e não
transformar o outro numa pessoa da família, com quem não é suposto ter
uma relação erótica.
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É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...
Vinicius de Moraes
Por muito que nos custe aceitar a pergunta, e mais
ainda partilhá-la com o outro, convém fazê-la de vez em quando. Será que
eu serei feliz sem esta pessoa?
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Com todo o risco das perguntas ficcionais, a resposta
dá-nos um bom indicador do estado da nossa felicidade. Felicidade e
dependência são coisas distintas: "Eu vivo melhor contigo se te fores
embora. Sofro, fico triste, mas volto ao que era, e a vida continua."
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A tristeza persistente pode fazer passar a euforia pela
paixão, mas voltará sempre a infelicidade se não for resolvida. Nenhuma
relação trata uma pessoa. A melancolia regressa complicada pela raiva
do abandono. Não diria como Sartre que o inferno são os outros, mas nem
sempre são o Céu.
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Iremos continuar à procura do amor ideal, eterno,
indestrutível, que aguente tudo com um sorriso rasgado de orelha a
orelha. Alguém a quem possamos dizer: "Sem ti, a vida não faz sentido";
até que um dia dizemos ou ouvimos: "Contigo, a vida não faz sentido."
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Mas a felicidade não passa por nada disto. Bem podemos
ficar sentados à espera que nos façam felizes, se não formos capazes de
juntar tudo o que de bom sentimos e fazer disto um escudo protetor para o
que não controlamos. Amor e felicidade tocam-se, cruzam-se, lutam,
podem mesmo ser amigos, mas têm vidas separadas. A felicidade é estarmos
à altura do que nos acontece, ninguém o pode fazer por nós.
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(...)
Pedem tanto a quem ama: pedem
o amor. Ainda pedem
a solidão e a loucura.
Dizem: dá-nos a tua canção que sai da sombra fria.
E eles querem dizer: tu darás a tua existência
ardida, a pura mortalidade.
Às mulheres amadas darei as pedras voantes,
uma a uma, os pára-
-raios abertíssimos da voz.
As raízes afogadas do nascimento. Darei o sono
onde um copo fala
fusiforme
batido pelos dedos. Pedem tudo aquilo em que respiro.
(...)
Porque não haverá paz para aquele que ama.
Seu ofício é incendiar povoações, roubar
e matar,
e alegrar o mundo, e aterrorizar,
e queimar os lugares reticentes deste mundo.
(Excertos de Lugar II, de Herberto Helder, 1981)
IN "EXPRESSO"
12/11/13
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