Os amigos do TC
As pressões de Bruxelas são inadmissíveis, as de Luanda são entre bons amigos. Há aqui qualquer coisa que não está a bater certo
1.Os angolanos, por razões
provavelmente internas, dão-se ao luxo de tratar o Estado português como
lixo. Que não somos um Estado de direito, que somos um bando de
corruptos, que não querem uma parceria estratégica connosco para que
aprendamos que o respeito é muito bonito. Estão naturalmente a ver-se ao
espelho. Mas não se pode dizer que a intimidação não dê os seus frutos.
Do Governo ao Presidente, estão todos dispostos a vergar ainda mais a
espinha para preservar o nosso interesse no mercado e no investimento
angolano. Cavaco Silva veio mesmo dizer que o Governo angolano está
sustentado em eleições consideradas como livres e justas. (Jacques
Chirac, num mau momento, também considerou que Putin era um grande
democrata).
Já quanto à Comissão, órgão central do sistema
institucional da União, a sensível alma portuguesa está preparada para
rechaçar, indignada, a sua ingerência nos assuntos internos do país e
nada a incomoda tanto como as pressões inadmissíveis de Bruxelas sobre o
Tribunal Constitucional. As pressões de Bruxelas são inadmissíveis, as
de Luanda são entre bons amigos.
Há aqui qualquer coisa que não está a bater certo.
2.
Escrevi recentemente que um pouco de patriotismo não faria mal a
ninguém. Referia-me à lamentável incapacidade das forças políticas que
querem manter Portugal no euro e que assinaram o memorando, de se
entenderem para negociar com a troika (e com as instituições que
representa) soluções mais adaptadas à realidade, sobretudo tendo em
vista o falhanço (que já quase ninguém nega) dos primeiros dois anos do
programa. Deste patriotismo continuamos à míngua. Tem custos políticos
que ninguém quer assumir. O PS prefere esperar que o Governo se desfaça
por dentro ou por um segundo resgate para obter o seu momento de glória
em eleições que seriam provavelmente antecipadas. Está a fazer mais ou
menos o mesmo que Passos Coelho, quando o PSD forçou eleições
antecipadas em 2011. É muito mais fácil alimentar tiradas patrióticas
contra Bruxelas (ou Berlim).
Não é que as palavras de Jorge
Sampaio não façam sentido e não sejam sentidas. Ouvir o presidente da
Comissão, num discurso em Portugal, dizer que se houver falta de
responsabilidade de todos os órgãos de soberania teremos o caldo
entornado, é demasiado ofensivo. Sampaio foi compreensivo quando
Barroso, então primeiro-ministro, lhe foi dizer a Belém que tinha a
oportunidade de presidir à Comissão, vendo nisso um ganho para o país.
Ver agora o mesmo Barroso tratar o seu país desta forma é algo que lhe
deve ser insuportável. Mas esse não é o verdadeiro problema.
O problema é
este assomo de "patriotismo" na defesa do Tribunal Constitucional,
visto como o herói da pátria e do Estado de direito e o último baluarte
contra as forças perversas de Bruxelas e dos seus representantes no
Governo português. Num país normal, a fiscalização do TC poderia ser
utilizada de maneira inteligente pelas forças políticas que assinaram o
programa de ajustamento como uma forma de pressionar Bruxelas ou Berlim.
Mas para isso era preciso que o Governo não tivesse enveredado pelo
caminho das acusações ao TC, sem se dar sequer ao trabalho de justificar
cabalmente as suas decisões com uma argumentação fundamentada (parece
que desta vez já arrepiou caminho e fez o trabalho de casa). E era
preciso também que o PS, em vez de prosseguir no caminho da
radicalização, tivesse a mesma atitude. Como nada disto aconteceu, o TC
foi transformado como o último reduto contra a troika, uma
espécie de governo-sombra a que toda a gente se agarra para determinar
as opções políticas do verdadeiro governo. O último episódio fala por
si.
3. O relatório enviado pelo chefe da delegação da Comissão em
Lisboa sobre o debate que se está a travar em Portugal não é muito
diferente de outros, que já me passaram pelos olhos. É uma prática
normal das delegações. Pode ser exercida com um espírito mais político
ou pode cingir-se a um arrazoado de banalidades que não comprometem
ninguém, conforme o perfil do funcionário que a chefia (muitas vezes
escolhido por entendimentos políticos entre a Comissão e o governo
nacional). Vale o que vale, ou seja, bastante pouco. Não sei se a actual
delegação tem enviado também para Bruxelas relatórios sobre o enorme
custo social do programa da troika. Se não fez, devia ter feito. Mas,
apesar de tudo, tirando uma coisa ou outra com uma linguagem um pouco
duvidosa, o que foi transmitido a Bruxelas é grosso modo o que se debate
aqui. E aqui o tema central também é em torno do destino
"constitucional" deste Orçamento.
O risco de uma crise política caso o
TC fizesse uma razia nas principais medidas destinadas a cortar os
gastos públicos é a nossa discussão quotidiana. As críticas às decisões
anteriores dos seus juízes são o pão nosso de cada dia. Tal como a
percepção de que o TC (tribunal político, com 13 juízes eleitos por um
entendimento entre os dois maiores partidos) tem de levar em
consideração que somos um país do euro e que a lei europeia se sobrepõe à
lei nacional. O que também é normal é que os nossos parceiros europeus
se preocupem com isso. O que volta a não ser normal é que o mesmo PS que
defende publicamente uma solução federal para a zona euro e que assinou
o Tratado Orçamental, no qual o nível de "ingerência" nas contas
públicas nacionais e das suas políticas económicas são muito maiores,
alinhe com os que acusam Bruxelas de se comportar de forma inadmissível.
Gostaríamos de perceber qual é então a visão socialista sobre o futuro
da Europa.
4. O debate sobre as ordens constitucionais já é
velho. Quando a Constituição europeia foi debatida no Parlamento
português (teria vida curta por causa do chumbo francês e holandês),
alguns eurocépticos e outros tantos constitucionalistas fizeram
cavalo-de-batalha com o facto de no novo tratado explicitar que a lei
constitucional nacional se submete ao tratado constitucional europeu, o
que verdadeiramente já não era uma novidade. A integração europeia
assenta numa partilha voluntária de soberania que os seus
Estados-membros estão dispostos a aceitar. O euro é a forma mais
avançada dessa soberania partilhada. A crise veio alterar as regras
dessa partilha, tornando-a mais exigente. A filosofia de Berlim para
lidar com esta crise é relativamente fácil de entender: primeiro, a
garantia de que as políticas orçamentais dos Estados-membros têm de
estar sujeitas a regras comuns muito estritas; segundo, que os choques
assimétricos não se podem transformar em crises do euro. Terceiro, se
tudo isto for adquirido, provavelmente a Alemanha acabará por negociar
uma qualquer forma de aliviar o peso da dívida em alguns países e de dar
aos mercados as garantias suficientes para eles olharem para a zona
euro de novo com confiança.
Como sempre, preferimos a via mais
fácil de ser patriota. O problema é que, na zona euro, o que acontece a
um tem repercussões para os outros, como temos aprendido à nossa custa
nos últimos dois anos. Nesta Europa nova que estamos a tentar construir,
os compromissos vão obedecer a regras muito mais duras. Com TC ou sem
TC.
As virgens ofendidas sabem tudo isto. Mas dá muito menos trabalho
lançar meia dúzia de invectivas contra Bruxelas do que discutir as
coisas a sério.
A nossa Constituição, apesar das várias revisões, é um
documento datado, que corresponde a um país e a uma Europa que já não
existem. Temos de olhar para ela com os olhos da realidade actual.
E
podemos ter de alterá-la num sentido que reflicta melhor o nosso lugar
na Europa e no euro. Mas estes é outro estúpido tabu em que ninguém quer
tocar. Dá muito menos trabalho ser amigo do TC.
IN "PÚBLICO"
20/10/13
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