Não me "10 de Junhem"!
Nunca gostei muito da data de 10 de Junho. Desde logo não há qualquer certeza de ser o dia em que o grande Camões faleceu.
Mas admitamos que sim, que foi mesmo nesse dia, em vésperas de Filipe
II de Espanha, (I de Portugal) ser aclamado rei. Será essa a razão para a
assinalarmos?
A verdade é que ninguém lhe ligou nenhuma até ao final do século XIX. Por estranho que vos pareça, o próprio Camões foi relativamente desprezado até ao século XIX.
Nessa altura (1880), os republicanos, para celebrarem o "esplendor de
Portugal" organizaram umas monumentais comemorações do épico português.
Sobrou dessas comemorações a estátua que está no Largo com o mesmo nome,
ali entre o Chiado e o Bairro Alto.
Mas nunca foi feriado. Até ao 5 de Outubro de
1910, quando se tornou dia de descanso, sim, mas em Lisboa, apenas, para
recordar essa grande jornada popular camoniana (e republicana, uma
vez que se partia do princípio que a monarquia portuguesa não estava à
altura da epopeia dos portugueses, dessa história grandiosa que apenas
os republicanos resgatariam).
Foi Salazar que tornou o 10 de Junho uma data nacional. Como dia de Portugal, de Camões e da Raça (argh!!!! Como se houvesse outra raça que não fosse a raça humana). O 10 de Junho, que já servira uma pequena mentira, passou a servir uma mentira maior. Aproveitou-se, então, para dar condecorações (coisa que se mantém até hoje), nomeadamente aos heróis da guerra colonial.
O 25 de Abril retirou a "Raça" e pôs-lhe as "Comunidades", porque as remessas de emigrantes se tinham tornado uma fonte de receita muito apetecível. Retirou as comemorações do Terreiro do Paço e fê-las itinerantes, pelo país fora. De resto, mantém-se o modelo: um discurso de Sua Excelência o venerando Chefe do Estado e outro de um patriota nomeado para o efeito.
O 10 de Junho é um mito e os maus mitos fazem má história.
A verdade é que a glória portuguesa do passado não foi, se calhar, tão
gloriosa; a verdade é que a miséria do presente não é, se calhar, tão
miserável. A verdade é que por muitos 10 de Junhos que me enfiem pela
goela abaixo, eu continuo a achar que os desígnios nacionais não
existem senão na pluralidade da opinião dos portugueses; a verdade é
que, por muitos 10 de Junhos que me façam engolir, continuo a não
entender o que é o interesse nacional senão como a bissetriz de
interesses diversos. E continuo a detestar discursos como os que já
ouvimos este ano: que o Brasil vai ajudar-nos; que Angola é muito
importante para nós. Eu não quero a ajuda do Brasil nem de Angola. Eu
quero que o Brasil e Angola (e todos os outros países do mundo) sintam
interesse em Portugal pelas qualidades de Portugal (pelo esforço de
portugueses, pelo trabalho de portugueses) e vejam que podem ter
benefícios para eles, brasileiros e angolanos, investindo aqui (afinal a
fábrica que mais faz pela nossa economia é alemã e só cá está porque
interessa à VW). Não é ajuda que se pretende, são interesses comuns.
Ao mesmo tempo, não há - não pode haver! -
história comum que permita lavar dinheiro sujo de qualquer país
(refiro-me concretamente a Angola). Entre o dinheiro sujo de um país lusófono e o dinheiro limpo de um país nórdico, nem o Camões me faz hesitar.
O 10 de Junho serve para exaltar (como se diz) as qualidades dos portugueses. Pois deixem-me dizer que os
portugueses hão de ter certas qualidades que neles prevalecem porque
lhe vêm do espaço comum, da língua comum, dos lugares comuns que todos,
os que por aqui nasceram, partilhamos. Mas eu não quero que me "10 de Junhem"! As minhas afinidades não são obrigatoriamente maiores em nome do Cartão do Cidadão. Cada vez mais, todos nós, somos cidadãos do mundo.
Eis uma coisa radical que aprendi na juventude e nunca reneguei. Ao
contrário de uns políticos de pacotilha, que continuam a raciocinar
pelos parâmetros dos velhos republicanos ou dos salazaristas. Não tenho
orgulho especial em ser português. Não vejo nisso nada de excecional em relação a ser Chinês, Francês, Inglês, Brasileiro, Moçambicano ou Neo-Zelandês. Temos
uma história comum, muitos de nós somos parentes. Isso não nos torna
melhores nem piores. Nem que nos 10 de Junhem a todos!
IN "EXPRESSO"
10/06/13
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