Ricardo Salgado,
Herberto Hélder
e um taxista
Sentei-me e escrevi Daniel Sampaio, amigo que, tantas e tantas vezes, me
justificou o que aos meus olhos parecia mais do que lógico: política,
não.
Um mundo onde lhe seria difícil justificar aos outros que a sua
razão, fundamental no exercício da profissão de ajudar vidas confusas ou
perdidas, era à prova de bala. Não embarcou na barca dos partidos e
seus intestinos. Porém, deixou a paixão pelo Sporting berrar-lhe ao
ouvido e agora terá de beber o frasco de veneno até ao fim. Talvez num
dia próximo lhe conte o que para ali vai.
Três pequenas
histórias. E três personagens: um banqueiro, um poeta e um taxista. Não é
um western spaghetti. Nem Sérgio Leone seria o realizador perfeito, mas
gosto das três. Cada uma à sua maneira.
Primeiro, o banqueiro.
Ricardo Salgado, figura maior da família Espírito Santo. As vezes que
ouvi políticos e jornalistas jurarem-me que é ele quem manda,
influencia, faz e desfaz, chegaria para escrever um pequeno livro de
fábulas modernas. Infelizmente, não o conheço. Se metade do que dizem
for verdadeiro, vale bem o preço do bilhete.
O presidente do BES é
um líder, poucos o negam. Quando algum colaborador se destaca para além
da normalidade, regra geral ao ultrapassar alguma prova de confiança,
pode ambicionar que Ricardo lhe diga: ‘O senhor não trabalha para o
banco, o senhor pertence à família’. A partir desse instante saberá que
subiu um patamar – não se mudará para o Olimpo dos eleitos, mas deixará,
decerto, de pertencer ao aquartelamento onde sobrevivem os gentios.
Depois,
noutro patamar, há os que vivem em perigosas ilusões. Esses, habitantes
de castelos de areia, correm o risco de um dia precisar de Daniel
Sampaio. Como o de um consultor que, no BES, preparou há uns anos um
qualquer relatório pedido pelo presidente. Trabalhou durante dias ou
semanas, várias vezes foi chamado ao último andar, onde Ricardo o ouviu e
fez recomendações. O homem parecia andar nas nuvens. Pairava por entre o
pessoal, sentia-se especial. Até que, por fim, chegou o dia de entregar
o relatório, quis o destino que fosse a um sábado ou domingo.
Como
lhe fora pedido dirigiu-se a Cascais, casa do banqueiro. Abriu-se a
porta, recebeu-o o mordomo. ‘O Dr. Ricardo Salgado está à minha espera’,
informou. Dirigiu-o então para o átrio, só tinha esperar um bocadinho.
Uns minutos depois, o criado pediu-lhe para deixar o relatório, o senhor
doutor agradecia-lhe a gentileza.
Segundo, o poeta. Herberto
Hélder, o poeta dos poetas entre os vivos. Mítico, genial e pai do meu
amigo de juventude, o comentador e político Daniel Oliveira. Herberto
não dá entrevistas, diz-se que a única foi para ‘safar’ Luiz Pacheco que
precisava de dinheiro.
Quando comecei no jornalismo sonhei fazer
o que ninguém conseguira. Pedi ajuda a Daniel, chamou-me louco.
Simplesmente não era possível. Como desistir não era opção, tentei
conhecê-lo. Sabia que frequentava uma tasca no Largo da Misericórdia,
fui. Coordenava um programa de televisão documental, o Portugalmente, e
estava convencido de que seria sensível a argumentos poeticamente
juvenis.
Estava sentado numa mesa. À sua volta um séquito de
amigos, admiradores, poetas com a ambição de reconhecimento, o habitual.
Não tive coragem de me mexer do sítio onde estava. E, a certa altura,
um tipo aparentemente fora de si dirigiu-se-lhe com uma urgência
absoluta: «Herberto, por favor, lê isto. Lê e diz-me o que vale,
suicido-me se não o fizeres». O autor dos Passos em Volta, com toda a
tranquilidade do mundo, pegou no papel, leu com toda a atenção e, por
fim, perante geral expectativa, deixou uma única palavra: «Suicida-te».
Terceiro,
o taxista. Apanhou-me na semana passada duas vezes seguidas – levou-me a
casa num dia, apanhou-me no outro de manhã. Como acredito que não há
coincidências, confesso-lhe que o homem não tem sorte ao jogo. Como é
evidente não lhe digo que tem o azar típico da maioria, o meu ou o seu
se porventura também joga. Não, o homem tem mesmo azar. E contou-me
porquê.
Joga todas as semanas desde que se conhece. Foi o
totobola, bingo, raspadinhas, bacarás, máquinas, euromilhões. Uns
prémios pequenos, umas linhas, uma coisinha ou outra, mas entre o deve e
o haver uma desgraça. Em todos os jogos, para ganhar a terminação, o
que gastava era sempre superior ao que recebia.
‘Deus, não quer
nada comigo’, queixou-se. Lá o tentei animar, afinal o que contava não
tinha nada de especial, o anormal seria se ganhasse. Ao parar o carro,
pediu-me um minuto porque as coisas não eram tão simples. Contou-me
então a história do único prémio que ganhou num sorteio na Feira
Popular. Era jovem, fogoso, acabara de aportar em Lisboa. Tinha o sangue
na guelra e jurou a si próprio que não sairia daquela noite sem uma
namorada. Foi com um amigo, vestiu a melhor camisa, estava confiante.
Parou na primeira barraquinha, apostou numa rifa. Para seu espanto o
papel indicava-lhe que fora premiado com o mais distinto dos prémios.
‘Não
te disse que isto hoje era tudo meu’, gritou para o colega. O dono da
barraca deu-lhe os parabéns e cinco panelas para o futuro enxoval.
Panelas que teve de carregar durante toda a noite provocando o riso e a
fuga de todas as meninas que procuravam o mesmo que ele.
Paguei e
saí. Com a cabeça ainda dentro do carro, partilhei o que me veio à
cabeça: «A minha avó materna costumava dizer que já não se fazem panelas
como antigamente. Nessa noite, teve sorte». Virei costas sem esperar a
resposta. Não a queria ouvir.
IN "SOL"
120/02/13
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