Sodoma e Camorra
Venho por este
meio confessar um delito, o de não exigir facturas aos comerciantes. Se
as facturas forem emitidas automaticamente, atiro-as ao lixo. Se as
facturas me forem úteis para efeitos de garantia do produto, procuro
guardá-las algures (e consigo perdê-las logo a seguir). Mas se as
facturas apenas pretenderem denunciar uma transacção às Finanças para
que estas beneficiem de um processo que lhes é moral e materialmente
alheio, não contem comigo.
Convencido de que o cumprimento
universal aliviaria os contribuintes cumpridores, houve um tempo em que o
bem-comum me parecia mais importante do que a margem de lucro dos
particulares.
Hoje, sei que, salvo pormenores, o bem comum é largamente
uma artimanha propagandística e que os particulares em causa saberão dar
à verba um destino melhor do que os senhores que nos governam: qualquer
que seja o destino e quaisquer que sejam os senhores, não existe alívio
para o contribuinte, excepto na medida em que invariável e
crescentemente é aliviado do que é seu. Se o dono do restaurante X
aproveita os rendimentos não declarados para adquirir um Mercedes ou 2
mil pares de sandálias, antes o Mercedes e as sandálias do homem do que o
patrocínio de amigalhaços, grevistas, excedentários e aberrações em que
o Estado desperdiça considerável parte do saque fiscal.
Uma das
aberrações são os funcionários da autoridade tributária agora destacados
para vigiar estabelecimentos, surpreender negociatas desprovidas de
factura e multar os hediondos prevaricadores. Isto é, os impostos também
visam pagar as criaturas incumbidas de policiar in loco o pagamento dos
impostos.
Perante tão perfeita paródia da racionalidade estatal,
resta-nos rir primeiro e tentar com que o fisco não ria por último.
Os
resultados do nosso trabalho já são extorquidos em quantidade
suficiente e segundo métodos impossíveis de contornar. É da mais
elementar lucidez resistir, dentro do possível, a extorsões adicionais.
Não vou ao ponto de, à semelhança de Francisco José Viegas, sugerir que
se mande os empregados do fisco "tomar no cú". O Francisco exagera nos
brasileirismos: os verbos "levar" ou "apanhar" chegam e sobram para um
Governo com aura liberal, hábitos socialistas e processos napolitanos.
Quarta-feira, 13 de Fevereiro
Aí, valentes
No
Parlamento, o deputado do CDS Hélder Amaral lembrou a ocorrência de
greves na CP durante 295 dos 366 dias de 2012. Num ápice, sobretudo as
bancadas dos partidos comunistas ergueram-se indignadíssimas, não sei se
por discordarem dos números se por discordarem da respectiva
divulgação. Os números parecem plausíveis, a divulgação parece
pertinente.
O que não parece razoável nem pertinente é a reacção
da extrema-esquerda, com uma das suas representantes a proibir o
referido deputado de questionar a "coragem" dos que ousam "lutar". Está
bem que as forças em questão nunca se destacaram particularmente pela
defesa do contribuinte, ainda que este financie um serviço de que não
usufrui.
Mas começa a ser um nadinha exagerado o fervor dessa gente em
benefício de "trabalhadores" que só ocasionalmente trabalham e em
prejuízo dos trabalhadores que gostariam de o fazer e, muitas vezes, não
conseguem. A maioria das classes médias, ou seja os cidadãos que não
cederam aos truques ambientalistas e mantêm a liberdade que o automóvel
privado proporciona, paga com fastio os amuos da CP e vai à sua vida.
Porém, os azarados incapazes de sustentar um carro e dependentes da
instabilidade emocional dos transportes públicos não vão a lado nenhum:
ficam pendurados nas estações, à espera de uma carruagem que, como o
Godot da peça, nunca chega.
Numa época em que os "progressistas"
de serviço patrulham minuciosamente o verbo do próximo à cata de ofensas
a pobrezinhos teóricos, é interessante notar o desprezo dos
"progressistas" pelos pobres de carne e osso, consagrado no gesto ou,
como eles repetem, na "luta" - contra os que já estão no chão. Coragem é
o termo.
Quinta-feira, 14 de Fevereiro
O monólogo das civilizações
Uma
das poucas reacções dissidentes à abdicação de Bento XVI veio, sem
surpresas, do chamado "mundo muçulmano". Um porta-voz dos sunitas
egípcios mostrou-se esperançado de que o próximo Papa retome o diálogo
entre o Vaticano e pelo menos aquela parcela do Islão, aliás
interrompido por esta quando Bento XVI, por acaso um paradigma de
ecumenismo, não apreciou devidamente os recorrentes atentados contra
minorias cristãs e citou uma descrição menos abonatória de Maomé.
Eis
mais um exemplo acabado do multiculturalismo unilateral que teima em
presidir às relações entre o Ocidente e os observadores de Alá. "Eles"
têm o direito e até o dever de discriminar e ocasionalmente assassinar
os infiéis que estiverem a jeito. "Nós" temos o dever de tolerar o
exercício e até o direito de o legitimar mediante "argumentos" sobre a
tolerância, a compreensão e a paz universal. A "eles", sobra-lhes crença
cega e fúria purificadora. A "nós", com raras excepções, resta-nos a
dúvida e o medo. Joseph Ratzinger é uma dessas excepções.
Outra é
o historiador e jornalista dinamarquês Lars Hedegaard. Conhecem? Não
admira, dado que os media internacionais nunca lhe deram particular
atenção, a não ser para referir o "populismo" de "extrema-direita" da
força política a que pertence (na verdade, o Partido Popular rejeita a
islamização da sociedade) ou o caso em que se viu acusado de violar as
leis anti-racistas do seu país (na verdade, Hedegaard decidiu discordar
do simpático tratamento a que os muçulmanos remetem as mulheres; acabou
indultado). Hedegaard também fundou a International Free Press Society, a
qual premiou os responsáveis pelos célebres cartoons do Profeta.
Há
dias, Hedegaard foi alvo de uma tentativa de homicídio na sua própria
casa. O homicida, com aspecto árabe, chegou disfarçado de carteiro e a
arma falhou. Hoje, Hedegaard é forçado a esconder-se. O falso carteiro
continua à solta. Numa prova de que vão longe os tempos da solidariedade
para com Salman Rushdie, praticamente ninguém noticiou o facto. O
Islão, seja o radical, seja o "moderado" que raramente condena a falta
de moderação, já conquistou o nosso silêncio e a nossa subserviência. De
batalha em batalha, não tardará a ganhar uma guerra brutalmente
desigual.
Sexta-feira, 15 de Fevereiro
Terra da fraternidade
Durante
a intervenção do primeiro-ministro num debate parlamentar, uma ou duas
dúzias de candidatos frustrados ao Ídolos irromperam numa interpretação
de Grândola, Vila Morena. Após serem escoltados para fora do edifício (e
obtido o título oficioso de mártires), os ociosos explicaram aos
repórteres excitados com o acontecimento: a cantoria provou que o povo é
quem mais ordena. Curioso. Na minha ingenuidade, pensava que o povo não
consiste num punhado de criaturas autodesignadas para falar em seu
nome, mas nos milhões que se expressam nas urnas e que por acaso
entregaram o poder ao referido primeiro-ministro.
O que sem dúvida
ficou provado foi a valentia do dr. Passos Coelho, consagrada no
momento em que, ao ser interrompido, considerou a interrupção um acto
de, cito incrédulo, "bom gosto". Bom gosto na escolha da cantiga, que
até o próprio José Afonso achava esteticamente fraquinha? Bom gosto na
homenagem ao artista que celebrizou a cantiga, um defensor da luta
armada e da generalidade dos regimes mais sanguinários do século XX? Bom
gosto na evocação do 25 de Abril, mesmo que os improvisados
cançonetistas da AR desejassem e desejem o oposto daquilo que, a bem ou a
mal, o golpe de Estado nos legou de melhor, leia-se a liberdade?
É
difícil escolher. É fácil notar que a vontade de parecer tolerante
levou o dr. Passos Coelho a quase congratular gente sem tolerância
alguma e, no fundo, a abdicar perante referências de extremistas que,
aqui, passam por consensuais. Digam o que disserem, não é normal que uma
democracia faça permanentes vénias aos seus maiores inimigos. Porém, é
normal que uma democracia assim seja a que temos.
Bento XVI
Muito
acima da generalidade dos líderes internacionais no intelecto, Joseph
Ratzinger é o exacto oposto dos líderes portugueses na atitude. O
primeiro anunciou a saída quando se sentiu incapaz, os segundos já são
incapazes quando entram. Talvez por isso, o primeiro chegou sob
desconfiança e partiu sob aplausos. À cautela, os segundos esgotam os
aplausos na chegada.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/02/13
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