HOJE NO
"PÚBLICO"
Abdulateef Al-Mulhim: “O inimigo não é Israel – está entre os árabes”
Os massacres na Síria impeliram o oficial da Marinha e comentador político saudita a reexaminar a história do Médio Oriente.Abdulateef Al-Mulhim explicou por que escreveu um artigo que surpreendeu o mundo ao ilibar o “regime sionista”
Abdulateef Al-Mulhim seguiu pela televisão, no domingo, o discurso de
Bashar al-Assad, o primeiro do Presidente sírio nos últimos seis meses.
Ao vê-lo repetir as mesmas condições para pôr fim à guerra civil que
dura desde 2011, o oficial que serviu durante 28 anos a Marinha Real
Saudita até à reserva lastimou, com um suspiro: “Este homem vive noutra
dimensão”.
Já sem controlo sobre áreas estratégicas do país,
incluindo metade de Aleppo, a maior cidade, e com grupos armados às
portas da capital, Assad voltou a exigir que a oposição aceite um “plano
de paz”, que inclui uma conferência de reconciliação nacional, eleições
e uma nova Constituição, mas que, sobretudo, o mantenha no poder. As
suas palavras, com referências a terroristas, conspiradores estrangeiros
e à Al-Qaeda, evocaram, segundo comentadores na região, “os delírios”
do coronel Khadafi antes de ser derrubado e morto, na Líbia, há dois
anos.
Observou Richard Spencer, correspondente do jornal britânico The Telegraph,
“o que mais interessa saber não é se os rebeldes aceitarão estas
propostas modestas, mas por que hão-de negociar se estão convencidos de
que Assad está perdido.” Na Ópera de Damasco, uma plateia dominada por
membros da minoria alauita que tem detido o exclusivo do poder desde há
mais de três décadas, aplaudiu o herdeiro da primeira dinastia
republicana árabe (filho do defunto Hafez al-Assad). Estariam a exprimir
amor pelo seu líder, questionou Spencer, ou era sinal de pânico face à
tomada de consciência de que Bashar se estava a despedir deles?
Numa conversa telefónica com o PÚBLICO, para actualizar uma
entrevista que dera em Dezembro último, o saudita Abdulateef Al-Mulhim
mostrou-se demasiado perturbado para analisar o vocabulário de Bashar,
mas relembrou que foram os massacres no país levantino (Mediterrâneo
oriental) que o levaram a publicar, no passado dia 6 de Outubro, um
artigo intitulado Arab Spring and the Israeli enemy / “A Primavera Árabe e o inimigo israelita”, em que iliba o outrora renegado “regime sionista”.
“Fico
com o coração partido ao ver a força aérea síria chacinar crianças
[2300, informa o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, de um
total de 60 mil vítimas contabilizadas este mês pela ONU]; ao ver a
mortandade no Iraque causada pelo sectarismo religioso entre xiitas e
sunitas; ao ver inocentes morrerem de fome no Iémen…”, disse-nos o
influente analista no Golfo Pérsico. “A destruição e as atrocidades que
vejo não são culpa de um inimigo externo. São cometidas por aqueles que
deveriam proteger as suas populações. O mundo árabe tem muitos inimigos,
mas Israel deveria estar no fim da lista. Os principais inimigos são
internos: corrupção, falta de liberdade e desrespeito pelos direitos
humanos. Os crimes dos ditadores árabes são muito piores do que todas as
guerras israelo-árabes. Veja-se o Egipto: em vez de reconstruírem um
país após a queda de Hosni Mubarak, salafistas querem destruir as
Pirâmides.”
Foi na coluna de opinião, que semanalmente publica no jornal Arab News,
que o comodoro (patente superior à de capitão de mar e guerra e
inferior à de contra-almirante) graduado em 1979 na State University of
New York Maritime College se interrogou: “Por que é que os Estados
árabes não gastaram os seus fundos em educação, saúde e infraestruturas e
optaram por guerras? Mas a questão mais dura que nenhum árabe quer
ouvir é por que é que Israel é o inimigo real do mundo árabe e do povo
árabe?”
Uma solução do conflito com Israel “tem de começar com a
resolução do problema dos refugiados palestinianos”, precisou Abdulateef
Al-Mulhim, na entrevista. “Só podem ser reconhecidos os refugiados de
1948 e não os de 1967; estes terão um lar na Cisjordânia e na Faixa de
Gaza. Pior estão os refugiados que se encontram no Líbano, no Iraque, na
Síria, na Jordânia, mas é necessário que os palestinianos aceitem um
compromisso.” Porque os árabes, assegura, “já não têm tempo e vontade de
lutar contra Israel. Os Estados do Golfo, por exemplo, estão a
modernizar-se; não lhes interessa outra guerra que possa destruir as
suas infraestruturas.”
Uma nova Primavera
Al-Mulhim confessou surpresa
com a gigantesca onda de elogios e críticas que recebeu após o artigo em
que culpa os árabes pelos seus males. “Já havia escrito textos mais
polémicos, todos eles traduzidos para outras línguas, mas talvez esta
reacção se possa explicar pelo difícil momento que vivemos.” Como
exemplo de dois artigos “ainda mais maldizentes”, menciona What if the Arabs had recognized Israel in 1948?/ “E se os árabes tivessem reconhecido Israel em 1948?”; e Is Visiting Jerusalem a recognition of Israel? / “Visitar Jerusalém é reconhecer Israel?”.
No
primeiro, o militar que vive em Khobar, a primeira cidade saudita
atacada por Osama bin-Laden, em 1996, lamentou a falta de visão dos
árabes quando a ONU propôs a divisão da Palestina do Mandato Britânico.
Se a existência de Israel não tivesse sido negada, “os palestinianos
teriam conseguido libertar-se das promessas ocas dos ditadores árabes
que insistem em dizer-lhes que os refugiados irão regressar às suas
casas, que todos os territórios árabes serão libertados e que Israel
será lançado ao fundo do mar. Alguns líderes árabes têm usado os
palestinianos para suprimir os seus próprios povos e se manterem no
poder. Cada político árabe, desde 1948, queria ser um herói e era fácil
conseguir isso, só tinha de gritar bem alto a sua intenção de destruir
Israel, sem mobilizar um único soldado (falar não custa nada).”
Na coluna provocatória sobre Jerusalém, por outro lado, aplaudiu
Anwar Sadat, o Presidente egípcio que pagou com a vida a audácia de
visitar, em 1977, uma capital disputada por dois povos, antes de assinar
o primeiro tratado de paz israelo-árabe. “O Egipto conseguiu o que
nunca conseguiria com uma guerra: a devolução da península do Sinai”.
Al-Mulhim também exortou a que fosse seguido o exemplo do Grande Mufti
do Egipto que se deslocou à Mesquita de Al-Aqsa, em 18 de Abril de 2012:
“Só assim se pode pôr fim ao conflito.”
No passado dia 5, na sua mais recente coluna, Republic of Iraq – Rich and fractured / “República do Iraque – Rica e fracturada”,
Al-Mulhim adverte para um inevitável banho de sangue se os iraquianos
se revoltarem contra os actuais líderes, que ele considera estarem
demasiado dependentes do Irão. É implacável, em particular, com o
primeiro-ministro Nouri al-Maliki, “que desconhece o significado de
democracia”. A chamada “Primavera Iraquiana” tem mobilizado
particularmente os sunitas, protegidos da Arábia Saudita, mas também os
xiitas mais pobres, nas localidades de Ramadi, Mossul e Samara.
Retomar a marcha
Para
Al-Mulhim, uma revolução como a que começou no Magrebe (Tunísia) e se
alastrou ao Mashreq, designadamente ao Bahrein, emirado para onde a Casa
de Saud enviou tropas e armas para esmagar uma sublevação xiita,
arrisca-se a dividir ainda mais – e “por muito tempo” – um país já
fracturado e “dos mais corruptos”. Deixou um conselho a Maliki: “Não
deve ignorar as reivindicações populares, porque o Irão não estará lá
[para o amparar] se ele cair.”
Há um provérbio no Médio Oriente –
“O inimigo do meu inimigo é meu amigo” – que, talvez, justifique a
formação e dissolução de várias alianças regionais, como a que uniu a
Síria de Hafez al-Assad ao Irão do ayatollah Khomeini contra o Iraque de
Saddam Hussein em 1980 – Damasco e Bagdad governados à época por
facções rivais do partido Baas. No entanto, se a criação do Estado de
Israel em 1948 fez com que fosse ostracizado pelos vizinhos árabes como
“O inimigo” que jamais poderia ser amigo, as recentes revoltas que
derrubaram autocratas vitalícios estão, aparentemente, a mudar
mentalidades.
O mundo há muito que está habituado à imensa
capacidade de autocrítica dos israelitas. Historiadores, como Benny
Morris ou Tom Segev, foram os primeiros a revelar segredos escondidos em
arquivos, reconhecendo “limpezas étnicas” e massacres, cometidos em
nome do sonho sionista de Theodor Herzl e que contribuíram para o êxodo
palestiniano.
Do lado árabe, essa reflexão tem sido feita, mas de
forma lenta, e provavelmente, ninguém ousou ir tão longe como Abdulateef
Al-Mulhim. Embora as suas críticas ao Iraque de Maliki sejam
partilhadas pela monarquia saudita, hostil à teocracia iraniana, o facto
de ele poder exprimir – e publicar – opiniões que não são as da realeza
em Riad, “sem correr o risco de ser preso”, é um sinal de que “o
comboio árabe parado desde 1948” retomou finalmente a viagem, esperando
ainda alcançar o progresso que Israel atingiu nos últimos 65 anos.
* Desassombrado...vai ter a cabeça a prémio
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