O serviço público não é a RTP
Na sua coluna de opinião no Público da passada terça-feira, Paulo
Rangel, eurodeputado do PSD, escreve que «a decisão de privatizar a RTP
foi ratificada pelos portugueses nas eleições de 2011: quando votaram,
os eleitores estavam plenamente advertidos e conscientes de que aquela
intenção constava do programa eleitoral do partido que acabou por sair
vencedor».
Jurista como é, Rangel dá uma grande importância aos
formalismos (até que ponto, de facto, os eleitores estavam «plenamente
advertidos e conscientes» sobre aquele ponto isolado de um programa
político?). E, enquanto militante do PSD, não desejará incorrer no
pecado da infidelidade partidária (apesar da reconhecida independência
de opinião que tem manifestado a propósito de variados temas).
Mas
existe uma flagrante contradição entre a posição de princípio do
eurodeputado, navegando cautelosamente entre os inenarráveis acidentes e
confusões partidárias deste processo, e o ‘estado de alma’ de Rangel
sobre a RTP. É que, para ele, a «RTP é uma instituição, uma instituição
sedimentada e radicada na sociedade portuguesa, com a qual os
portugueses desenvolveram um sentimento de afeição e de pertença» (?). E
sublinha ainda: «A RTP, enquanto instituição, não é apenas património
material do Estado, é património imaterial dos cidadãos» (!).
Dito
isto, como é que se pode aceitar, seja a que pretexto for, a
privatização ou a concessão da exploração por terceiros daquilo que
constitui não apenas «património material do Estado» mas também
«património imaterial dos cidadãos»? Este estatuto de santidade estatal e
de cidadania deveria ser rigorosamente intocável e colocado acima de
quaisquer derivas ou «tentações revolucionárias» (para recorrer a uma
outra definição de Rangel). Tal como a pátria, a RTP não deveria
discutir-se…
Ora, o que tem envenenado muitas discussões é a
confusão entre o suposto corpo místico ou «imaterial» da RTP e o serviço
público audiovisual que compete ao Estado assegurar, sobretudo em
tempos de grave crise nacional como aqueles que vivemos.
Além
disso, não me parece de todo que a RTP da época da ditadura ou a RTP
persistentemente governamentalizada depois dela, a RTP que agora se
limita essencialmente a concorrer com os modelos das televisões privadas
generalistas ou a RTP com programação aflitivamente desconchavada dos
canais internacionais, enfim, a RTP que existiu ou existe hoje –
ressalvando porventura os tempos já longínquos de Soares Louro, Fernando
Lopes e Graça Moura – possa representar a nobre e fundamental missão do
serviço público.
É aliás nesse equívoco que acabou também por
alinhar o recente manifesto contra a privatização do serviço público,
como se este pudesse ser encarnado por uma instituição que, salvo muito
raras excepções (alguns programas da RTP-2, como Câmara Clara, ou
passagens episódicas e desgarradas de documentários ou ficções de
qualidade), se tem deixado enredar numa máquina burocrática, corporativa
e dispendiosíssima que tritura a criatividade e a pluralidade
indispensáveis a um serviço público digno desse nome. Um serviço público
que, de resto, chega a ser melhor representado por alguns canais
informativos privados do que pela RTP (e, designadamente, pelo seu
oficiosíssimo canal público de informação).
A questão prioritária
– como tenho vindo a escrever nestas colunas – é, pois, a natureza e as
formas de difusão que deve assumir o serviço público audiovisual,
colocado sob uma tutela com garantias estritas e constitucionais de
desgovernamentalização e sem obediência a quaisquer formas de propaganda
oficial, a exemplo do que acontece com a BBC.
Definidas regras,
conteúdos programáticos e canais de difusão – sem exclusão dos privados
que estejam abertos a cooperar em espaços coerentes com esse objectivo
–, cabe a uma futura televisão do Estado assumir a missão cultural e de
coesão nacional de trazer aos públicos mais variados e minoritários os
programas alternativos que as televisões comerciais não estão
vocacionadas para oferecer.
Ao longo da vigência deste Governo
perdeu-se já demasiado tempo com aterradores disparates e inconfessáveis
manobras politiqueiras, quando a urgência seria, precisamente, proceder
àquilo que parece temer Paulo Rangel. A recusa de libertar o serviço
público da herança mais funesta da RTP implica deixar tudo na mesma,
para proveito de quem está sobretudo interessado no imobilismo. É
preciso, de facto, uma revolução.
IN "SOL"
10/09/12
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