11/07/2012

ANA CRISTINA PEREIRA




Madeira vista de fora:
  Resgatar 
      qualquer coisa 

Parece que levamos sempre qualquer coisa do sítio onde nascemos 

Ia a andar, com vagar. De repente, do outro lado da rua, um toldo verde: "Epicerie - Poissonnerie La Perle de l'Atlantique". 

Já me deparei com portugueses nos sítios mais improváveis. Sei lá, numa loja colorida junto ao que resta da cidade das cruzadas, Acre, na Galileia, em Israel, ou numa cela de luxo, na prisão de San Pedro, em La Paz, na Bolívia. Mesmo assim, não esperava encontrar ali, numa mercearia-peixaria, um homem vindo da terra da minha avó materna, mesmo que "ali" fosse a rue du Canal, uma das mais portuguesas ruas de Esch-sur-Azette, uma das mais portuguesas comunas do Luxemburgo. 

Quando me soube uma jornalista portuguesa a fazer uma reportagem sobre portugueses, o homem perguntou de onde era. Também era de São Vicente, mas da freguesia de Ponta Delgada, sítio da Lombada - 1º Lombada para ser mais preciso. E, pronto, conhecera a minha avó Ana, a minha tia-avó Cândida, as suas netas e muita gente que eu nem seria capaz de identificar. 

Não o entrevistei. Seria entrevistar um "quase-parente".E para entrevistar um "quase-parente" é preciso avisar leitores. 

Pus-me a ver a broa de milho, o queijo da serra, o presunto, as postas de bacalhau, os tremoços… E saí, toda contente, com uma garrafa de Madeira na mão: um boal com uma certa idade, o ideal para acompanhar os queijos que os meus amigos, José Luís e Jessica, serviriam naquela noite. 

Agora há pouco, durante o Europeu de Futebol, dei por mim a pensar naquele instante partilhado com aquele senhor, que me falara com um estranho encanto. Aconteceu quando percebi que, mesmo sem qualquer gosto futebolístico, sentia alguma irritação ao ouvir ataques persistentes ao Cristiano Ronaldo. Parece que levamos sempre qualquer coisa do sítio onde nascemos. 

Parece que a carregamos para toda a parte - sem notar, às vezes. E parece que essa qualquer coisa nos assalta sem nos darmos conta. Talvez seja a infância a chamar por nós. Talvez a comida seja o melhor transporte para ela. 

Esta semana, cá em casa, houve "batata da barbiça", vinda de São Vicente, assada no forno, só com sal grosso. Fiquei com a barriga cheia, como uma miúda. E estiquei-me no sofá a ler uns textos da Clarice Lispector, como há tempos me recomendou Eleutério, um português residente no Brasil, a propósito de uma destas crónicas. E encontrei isto: "Quantas vezes tenho vontade de encontrar não sei o quê... não sei onde... para resgatar alguma coisa que nem sei o que é nem onde perdi."



 Jornalista do Público 


IN ""DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA" 
08/07/12

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