Em memória do pórtico da A22
Primeiro foi D. Carlos, a 1 de Fevereiro de 1908, e agora foi o pórtico da A22, a 12 de Dezembro de 2011. O assassinato político voltou a Portugal. Há qualquer coisa no dealbar dos séculos que excita os conspiradores. Quando, no início do século XXII, esta revista estiver a ser lida, na sala de espera dum consultório médico, o leitor futuro que se acautele: alguém ou alguma coisa estará para levar um tiro.
O método dos atentados é semelhante: os regicidas estavam descontentes com a monarquia e mataram o rei; os portagicidas estavam descontentes com as portagens e abateram o pórtico. A única diferença é que o descontentamento dos portagicidas é mais específico, e a raiva mais direccionada. Antes odiava-se uma pessoa, hoje abominam-se equipamentos informáticos e cablagens. Menos mau. Embora dificulte a tarefa de prever o que será objecto de cólera no futuro. Em 1908, as auto-estradas não tinham ainda sido inventadas, e os pórticos de portagem ainda menos. Já havia austeridade, que é a mais velha governação do mundo, e armas de fogo - que, volvidos cem anos, continuam a ser o mais expressivo meio de comunicar uma insatisfação. Os aborrecimentos que mudem à vontade: nós cá estaremos para lhes espetar um balázio. Não podemos imaginar o modo como, no princípio do próximo século, o governo aplicará a lei. Sabemos apenas que haverá medidas de austeridade e que os instrumentos usados para as impor levarão um tiro. Esta capacidade, ainda que parcial, de predizer o futuro, sempre dá algum sossego.
O novo modelo de atentado, dirigido a objectos inanimados, tem apenas um inconveniente: por ser muito menos grave do que os homicídios, e também menos eficaz, tende a ser mais frequente. É possível que, a partir de hoje, quem se insurja contra o aumento do IVA na restauração dê dois tiros na conta do café; que quem se exalte com a meia hora de trabalho adicional dispare sobre o relógio de ponto; que aqueles que se indignam com o corte nos salários fuzilem o recibo do vencimento. Portugal inteiro vai parecer a noite de fim de ano na Madeira: estampidos e cheiro a pólvora. Embora, muito provavelmente, seja mais barato abater a tiro todas as portagens do país do que pagar cinco minutos de fogo-de-artifício na Madeira. E ligeiramente menos criminoso.
IN "VISÃO"
22/12/11
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