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* Sociólogo
IN "EXPRESSO"
22/05/20
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Intermitência e
a miséria na cultura
A partir de 1 de junho, dizem as notícias, os aviões já poderão voar cheios. “E os teatros, senhores?! Não conheço melhor espaço para voar do que os teatros...”, perguntava António Capelo, ironicamente, nas redes sociais.
O debate não será tanto sobre as regras sanitárias para o
desconfinamento, mas mais sobre a brutal desigualdade com que se trata
as diferentes áreas de atividade. No topo, a banca, impune como sempre.
No sistema financeiro, a crise é sempre uma oportunidade. A economia do
país pode estar paralisada, com centenas de milhares de pessoas sem
rendimento nem proteção - mas o Novo Banco consegue a proeza de, na
mesma semana, arrebatar a Mário Centeno mais 850 milhões dos
contribuintes, sem qualquer auditoria, e tornar público o aumento de 50%
da remuneração a administradores. Um outro exemplo em que acaba de
haver apoios: a comunicação social. Os critérios, em termos de serviço
público e preservação do emprego merecem crítica, excluíram projetos não
comerciais, não distinguiram informação das outras áreas de atividade
dos grupos económicos, não exigiram nenhuma contrapartida em termos do
respeito pelos direitos laborais. O facto é que o Governo antecipou 15
milhões para os grupos de comunicação social. E para a cultura, a tal em
que trabalham mais de 130 mil pessoas?
Na cultura, é uma miséria. Miséria antiga na dotação orçamental, a
léguas sequer do 1%. Miséria no modo errático como o Governo, e em
particular a Ministra Graça Fonseca tem gerido esta crise, dando a ideia
de ter chegado à tutela como quem aterra num planeta que lhe é
totalmente estranho.
Miséria de apoios de emergência que na verdade são concursos que
excluem a maioria. De anúncios atabalhoados como os concertos em bola de
neve para conhecidos de conhecidos que tiveram de ser cancelados
perante a indignação dos músicos. Miséria das mesmas medidas
propagandeadas várias vezes como se, pela multiplicação de anúncios, se
conseguisse um efeito multiplicador do seu impacto real (um exemplo: o
concurso da Direção Geral das Artes, com esse arrebatador valor de 1
milhão e 700 mil euros).
Miséria no modo como muitas instituições tratam os trabalhadores. A Casa
da Música, e também Serralves, foram porventura os exemplos mais
visíveis. Continuadas e antigas violações grosseiras da lei, com recurso
a falsos recibos verdes, aliás generalizado no setor (é preciso
insistir: ser contrato ou ser recibo não tem rigorosamente nada a ver
com o horário, a frequência nem a exclusividade!). Um desprezo chocante
por parte das Administrações: canceladas as atividades, a muitos dos
trabalhadores quis-se pagar zero, descartando-os pura e simplesmente,
pressionando-os ainda a renunciarem “voluntariamente” aos seus direitos.
Tudo isto em instituições que vivem do dinheiro público (10 milhões a
cada ano para a Casa da Música, por exemplo), mas que são geridas como
fundações privadas, com as mais ignóbeis práticas patronais. Tudo isto,
insista-se, em instituições às quais o Estado pode exigir outras
práticas (laborais, por via da ACT; artísticas e de gestão, porque
financia e porque tem presença no Conselho de Administração). E não foi
apenas nestas que isto aconteceu: quantos assistentes de sala dos
teatros municipais – do Porto incluído - ficam sem receber nada em
abril, maio, junho e julho pelas atividades canceladas? E técnicos de
som, intermediados por outras empresas? Quantos tiveram atividades
canceladas e não pagas pelos municípios?
Miséria, também, no montante do apoios extraordinário que o Governo
decidiu destinar a esta área, ainda mais se comparados com outros. Com
um extra. Algumas das verbas anunciadas, como a que hoje o
Primeiro-Ministro divulgou, são na prática um desvio para as autarquias
de um montante que estava já reservado para a Cultura mas cujo destino
inicial, o programa “Cultura para Todos”, foi cancelado (e que até teria
uma verba maior).
Miséria, finalmente, nos próprios valores dos apoios dirigidos aos
trabalhadores intermitentes. Para os que estavam no primeiro ano do
regime dos recibos verdes, o apoio situa-se entre 93€ e 219,40€ por mês.
Miséria. Para os que fazem descontos há mais tempo, o valor pode ir no
máximo aos 635€, mas na esmagadora maioria dos casos ficará abaixo do
limiar da pobreza, entre 219€ e 438€ mensais. Miséria. Não admira, como
mostra hoje uma longa reportagem de um outro jornal, que de repente nos
tenhamos confrontado com a condição proletária da generalidade dos
“invisíveis da cultura e do audiovisual” e com a fragilidade da sua
proteção social, o que faz aliás com que haja centenas que dependem
agora de cabazes distribuídos por redes de solidariedade entretanto
postas no terreno.
Ouça-se o alerta que tem sido lançado por tantos e tantas. É preciso
mexer a sério na cultura política que temos sobre a política cultural. É
preciso mudar a cultura laboral miserável que existe na cultura. É
preciso transformar a desproteção social que é consequência das duas
anteriores.
Digo rápido três urgências. A primeira: um apoio a fundo perdido que
tenha em conta o que foi cancelado e reagendado e que seja distribuído
pelos trabalhadores. A segunda: substituir a lógica do recibo pelo
princípio do contrato (resolvia tanta coisa!). A terceira: um estatuto
de intermitência (aplicável a trabalhadores por conta de outrem e a
trabalhadores independentes, sem distinção) que assuma de uma vez por
todas que, num setor com estas características, para garantir proteção
social robusta, a relação entre contribuições, salários e rendimentos
será muito provavelmente deficitária do ponto de vista da Segurança
Social, mas pode ser financiada pelo Orçamento do Estado como uma
política de investimento cultural. Sim, financiar com o Orçamento do
Estado a Segurança Social para os intermitentes é uma medida ousada, mas
é mesmo parte de uma política cultural se não acharmos que se vive de
ar e vento, de palmas e de palmadinhas nas costas. Se ao menos isso
aprendêssemos com a crise e a pandemia, já seria um pequeno grande
passo.
* Sociólogo
IN "EXPRESSO"
22/05/20
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