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O que mudou num mês?
Não há dinheiro.
Então se definimos uma estratégia para conter o surto, e essa
estratégia está a funcionar, por que razão vamos alterá-la?
Simplesmente, porque não há dinheiro.
Subitamente, abrimos as janelas à primavera, depois de um
curto mas intenso confinamento invernoso. Há pouco mais de um mês, a palavra de
ordem era “Para casa, e em força!”. Explicavam-nos que isso era essencial para
cortar a velocidade de contágio da pandemia em Portugal, para não sobrecarregar
o Serviço Nacional de Saúde para além da sua capacidade. Diziam-nos que o tempo
era de cuidar da Saúde, o nosso bem tão mais precioso que a tudo tinha de se
sobrepor. A Economia seria arrasada, sim, mas lidaríamos com isso mais tarde.
Era o tempo de combater a morte à nossa porta, nas ruas.
Diziam-nos isso e nós acreditámos, e ainda bem. Cada um de
nós um pequeno herói, de calças de pijama e estoicamente no sofá, aplaudindo à
janela os verdadeiros heróis. E bem. Com isso, estávamos a salvar a vida a
milhares de portugueses, o pouco que podíamos fazer com esta impotência surda
que nos assaltou. Os números parecem validar esta estratégia, pelo menos a mim,
que serei a única pessoa em Portugal que não é um especialista em Saúde
Pública, pelo que vou lendo e ouvindo por este País atafulhado
insuportavelmente de comentários. Marcelo fala de um “milagre português”, atribuindo
ao termo paternidade estrangeira mas perfilhando-o entusiasticamente. Fomos
para casa, como bons cidadãos. Com isso, mantivemos os números controlados e
permitimos que o SNS pudesse continuar a desempenhar a sua função de acudir aos
aflitos e salvar vidas, muitas vidas. E agora, sem que algum destes
pressupostos se tivesse alterado, dizem-nos que é para voltar às ruas.
O que me está aqui a escapar?
No espaço de poucos dias, de Costa a Marcelo, passando por
Siza Vieira e outros responsáveis, o clima mudou radicalmente. O Presidente tem
dito insistentemente que a nossa liberdade, em Maio, se ganha em Abril. O ponto
é que vimos ganhando (alegadamente) uma batalha mas o desfecho da guerra está
longe, muito longe. A pandemia não será derrotada em Abril, nem em Maio, nem em
Agosto. A pandemia é e será enfrentada todos os dias, em que cada um deles é a
sua própria batalha. Se vencemos batalhas porque seguimos determinada
estratégia (segundo o que nos disseram desde a primeira hora), vamos fazer
diferente agora porquê?
Há uma vacina e está disponível imediatamente para todos?
Não. Há um medicamento eficaz e em stock nos hospitais para acudir com eficácia
aos necessitados? Não, também não. Então se definimos uma estratégia para
conter o surto, e essa estratégia está a funcionar, por que razão vamos
alterá-la? Simplesmente, porque não há dinheiro.
Eu não sou contra a abertura progressiva, que é o que está a
ser proposto pelas autoridades. Até porque nós não temos quaisquer perspetivas
realistas de que venha uma droga eficaz e abundante a curto prazo. Assim sendo,
na verdade, é relativamente indiferente, em termos de Saúde Pública, abrirmos
as portas das casas em Maio, em Junho ou em Julho. Seja quando for que o
façamos, continuará a não haver vacina, nem medicamento, nem escudo milagroso
que nos proteja. E se, para a Saúde, é relativamente indiferente a data, para a
Economia ela é decisiva. E é a Economia, a dureza do mole bolso vazio, que está
a comandar, agora, as decisões.
Não sei se o governo subestimou os custos desta travagem,
para as empresas e para os cofres do Estado (por exemplo com a magnitude do
recurso ao layoff simplificado). Provavelmente esperaria uma ação solidária
europeia, com meios que ajudassem neste momento absolutamente extraordinário,
algo que o bom senso poderia razoavelmente prever. O problema é que o bom senso
não é há muito critério para a atuação da União Europeia. Ao fim do dia, e por
mais floreados que o esforçado Mário Centeno faça, da Europa veio uma mão-cheia
de nada, e mesmo assim arrancada a ferros.
Contas feitas, não há dinheiro, não há uma forma minimamente
sustentável de aguentar meses a fio esta noite económica, sem comprometer o
futuro do País. E isto vale para o Estado e para um número assustador de
empresas, seus trabalhadores e suas famílias.
É isto, e não qualquer outra coisa, que justifica esta
mudança de postura das nossas autoridades políticas (porque as de Saúde,
compreensivelmente, estão notoriamente menos entusiasmadas).
Dizem-nos que temos de “aprender a viver com o vírus”, que
continuará a passear-se no meio de nós até aprendermos uma forma de dar cabo
dele. Mas, na verdade, se a estratégia é esta, isso não é nada que não nos
pudessem ter dito há um mês. Ainda assim, este tempo de clausura não foi
totalmente inútil. Permitiu um reforço, ainda que não esmagador, da capacidade
instalada do nosso SNS e deu aos especialistas no terreno um maior conhecimento
e, sobretudo, uma organização “de guerra” que não era possível montar bem de um
dia para o outro. No essencial, o ganho foi este.
Neste tempo em que parte do País esteve fechado, não
aprendemos a matar o bicho. Ganhámos foi a noção de que isso não está para
breve e que a fatura económica, financeira e social não é comportável se isto
durar muito tempo. Mesmo que isso mate mais gente, e irá inevitavelmente matar.
Ninguém quis, por motivos compreensíveis, fazer a tal
escolha entre a Saúde e a Economia. E, na verdade, não temos escolha. Vamos ter
de andar na fina linha do risco, voltar gradualmente à vida com a morte sempre
à espreita.
Que o saibamos todos fazer com responsabilidade.
* Director
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IN "EXAME"
17/04/20
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