29/04/2020

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HOJE NO 
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
"A maior descoberta sobre o sistema imunitário foi que eram os micróbios, e não Deus, que causavam doenças"

O sistema imunitário é a maior arma do ser humano para lutar contra a doença, curar-se naturalmente e em alguns casos autodestruir-se. Daniel M. Davis, investigador, imunologista e professor da Universidade de Manchester, no Reino Unido, desvenda-o no livro acabado de lançar em Portugal pela Porto Editora - O Incrivel Sistema Imunitário. Nunca precisámos tanto deles como agora - do sistema imunitário e deste livro. O DN conversou com o autor.

O título original do seu livro é The Beautiful Cure [que em inglês é fantástico, mas em português não funciona e por isso a Porto Editora chamou-lhe O Incrível Sistema Imunitário]. Porquê este título para um livro sobre o sistema imunitário?
Porque o sistema imunitário é extraordinariamente belo. É provavelmente a parte do corpo humano que percebemos melhor e todos os pormenores que conhecemos sobre o seu funcionamento nos dão a ver a sua beleza profunda. Só para dar um exemplo, o sistema imunitário tem de combater micróbios que nunca existiram antes no universo e a maneira como o faz é fabulosa. Há uma série de células diferentes, genes, proteínas envolvidas neste processo para nos ajudar a eliminar os germes e há duas coisas que tiramos disto: uma é a profunda maravilha que cada um dos nossos corpos é realmente e a outra é a importância médica desse conhecimento, que permite criar novos tipos de medicamentos.
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É também na possibilidade de "manipular" o sistema imunitário no sentido de ele próprio se transformar em medicamento para combater doenças como o cancro, infeções várias ou doenças autoimunes que reside a beleza?
Sim. Há duas maneiras de pensar nisso: o sistema imunitário é o que nos cura de diferentes doenças e isso é bonito e segundo, também é verdade que podemos aumentar o poder do sistema imunitário, criando novos medicamentos que funcionam reforçando a resposta imunitária para combater alguns cancros, ou suprimindo-a, para prevenir uma resposta excessiva como a que acontece na autoimunidade. Portanto, podemos manipular o poder do nosso sistema imunitário de forma que nos ajude a combater vários tipos de doenças e foi também isso que me levou a pensar nele como a cura bonita [the beautiful cure].

Temos agora um novo vírus a desafiar-nos - a SARS-CoV-2. O que já sabemos sobre a relação que se estabelece entre este e o sistema imunitário quando entram em contacto?
É um vírus completamente novo, existe há apenas quatro meses, por isso, para ser honesto, ainda há muitas questões por compreender sobre o que acontece realmente. Sabemos que pessoas diferentes têm respostas diferentes ao vírus e há algumas indicações de que os diferentes sintomas dependem de como cada sistema imunitário responde. Sabemos que, em alguns casos, alguns dos sintomas mais severos estão correlacionados com uma resposta excessiva dos macrófagos, células imunitárias, nos pulmões, e uma das possibilidades de tratamento em estudo é a de baixar a resposta imunitária nestes casos. Mas ainda há muitas questões por responder sobre a resposta imunitária a este vírus: se as pessoas podem ser reinfetadas, por quanto tempo estão protegidas depois de recuperarem, a própria possibilidade de uma vacina depende da capacidade de provocar uma resposta imunitária através de meios artificiais. Há muitas perguntas por responder e há muitos estudos a sair todos os dias e portanto é como um filme em fast forward. Qualquer coisa que possa dizer-lhe hoje, amanhã pode ser diferente.

Uma das abordagens terapêuticas que parece estar a ter bons resultados na covid-19 é a utilização de plasma de pacientes infetados. Como funciona?
A ideia é que os anticorpos presentes no plasma infetado possam neutralizar o vírus, mas não tenho a certeza de que já esteja a ser utilizada. Penso que é uma possibilidade que está a ser estudada, mas não tenho a certeza de que já esteja provado que funciona. Há muitas ideias a serem experimentadas. Penso que estarão a ser realizados cerca de 600 ensaios clínicos em todo o mundo e quando uma coisa destas acontece, quando há um novo vírus, não há uma ideia clara de que vacina ou tratamento funciona. Temos conhecimento suficiente para tentar várias hipóteses e no fim algumas delas terão resultado, mas por enquanto é difícil de prever quais é que terão sucesso. O que estamos a fazer neste momento é uma série de apostas, algumas delas serão vencedoras e outras não.

Qual é a sua aposta? Em que linha de investigação está a trabalhar?
Eu estou a dar apoio à investigação. No nosso instituto, na universidade de Manchester, estamos a pesquisar o que acontece no sangue dos pacientes hospitalizados com infeção por covid-19. Estamos a analisar que tipo células imunitárias estão presentes no sangue, como são ativadas, o que está a acontecer e a correlacionar com os sintomas que têm e com a forma como respondem aos vários tratamentos e espero que tenhamos alguns resultados em breve. O que acontece no sangue pode indicar que tipo de tratamento é mais adequado a cada paciente. Isto está a acontecer em todo o mundo, em cada país, não apenas no nosso instituto. Há um esforço internacional que eventualmente levará a perceber com maior clareza o que acontece no sistema imunitário destes pacientes e se há indicações úteis no sangue que nos possam ajudar a perceber que tipo de tratamento pode ser melhor ou pior para cada um.
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou recentemente para a possibilidade de a presença de anticorpos não significar imunidade. É um revés na esperança colocada nos testes de imunidade e na imunidade de grupo para um regresso gradual à normalidade?
Quando as pessoas estão infetadas com covid-19, é provável que criem anticorpos e produzam algum nível de imunidade que torna menos provável que venham a ser reinfetadas, mas não sabemos com certeza se é assim e, mais importante, não sabemos quanto tempo dura essa proteção. Vamos saber, com o tempo, à medida que mais pessoas sejam infetadas e mais estudos sejam feitos, mas neste momento não sabemos. A experiência e o conhecimento que temos, com as vacinas que existem, dizem-nos que algumas têm que ser tomadas todos os anos, outras basta uma toma à nascença para garantirem imunidade a vida toda, portanto sabemos que a resposta imunitária a diferentes tipos de micróbios varia muito. Sobre este vírus em particular, sabemos ainda muito pouco. E esta é uma das áreas da imunologia em que ainda há muito por saber. Ainda não é claro exatamente quanto tempo dura a parte adaptativa (a memória) do sistema imunitário e como é criada, sabemos os princípios gerais, que o sistema imunitário mantém estas células no organismo durante muito tempo para que se possam multiplicar depressa se o germe voltar, mas não sabemos exatamente o que leva a uma resposta mais forte ou mais fraca, dependendo dos diferentes vírus.

No fim do seu livro faz um apelo para uma maior cooperação no trabalho científico, nomeadamente na indústria farmacêutica, que não deveria focar-se tanto no retorno financeiro, mas sim na saúde e bem-estar coletivos. Acha que esta pandemia veio tornar essa questão ainda mais clara?
A pandemia é uma grande tragédia, mas é verdade que algumas coisas sairão desta situação que poderão ser boas para a sociedade e uma delas é essa. Parece que aos poucos o mundo está a unir-se e torna-se claro que esta é uma situação em que as estruturas económicas normais que temos não são apropriadas. Parece que temos que encontrar soluções conjuntas - mesmo que encontremos uma vacina temos que a produzir em quantidades massivas e distribui-la em todo o mundo, não se trata apenas de ganhar dinheiro para uma empresa em particular. As coisas estão a mudar e a longo prazo isso pode ter resultados positivos para a sociedade.

Se o desenvolvimento da vacina para a SARS-CoV-1 [que provocou um surto epidémico entre 2002 e 2003 em alguns países asiáticos] não tivesse sido interrompida por falta de interesse financeiro, poderíamos ter já uma vacina para a covid-19?
Não sei. É muito difícil dizer. Olhando de fora e retrospetivamente é muito fácil dizer que os fundos podiam ter sido gastos desta ou daquela forma. Há tantos tipos de investigação científica importantes e tão difícil de prever se vão ser mais ou menos relevantes. Por exemplo, há muitos tipos de descobertas científicas que não pareciam muito importantes há seis meses e agora tornaram-se fundamentais. Neste momento, uma das preocupações das pessoas é se é seguro receber uma encomenda por correio e quanto tempo pode o vírus estar ativo numa embalagem de cartão. Esse tipo de investigação não seria considerado vital há seis meses. Há novos ramos de investigação a sair desta pandemia. As coisas estão a mudar todos os dias, por isso não sei se é justo dizermos que devíamos ter investido mais há 15 anos numa vacina para a SARS-CoV-1.

Um dos capítulos do seu livro é sobre febre, stress e o poder da mente. O que é que depende de nós (pelo menos em parte) para manter o sistema imunitário a funcionar bem?
Este é um tópico complexo porque toda a gente quer saber como reforçar o seu sistema imunitário e na verdade as experiências para determinar isso são quase impossíveis de realizar porque teríamos que infetar pessoas com uma doença para ver o que acontece. No livro, dou o exemplo de pessoas que fazem tai shi e mindfulness vs pessoas que não fazem. As primeiras parecem ter sistemas imunitários mais fortes, mas não é possível ter resultados científicos comprovados porque não podemos fazer a experiência, portanto só podemos correlacionar. A questão é que há outras variáveis que influenciam os resultados, porque também podem dormir melhor e comer melhor, por exemplo. A única área em que há mais certezas é que uma longa exposição ao stress não é bom para o sistema imunitário.

E esta situação pandémica, que levou a maior parte do mundo a ficar isolada e confinada a casa, pode afetar negativamente o sistema imunitário?
É impossível saber. Há muitas variáveis. Se as pessoas não dormirem bem, se estiverem stressadas, se não estiverem a comer de forma saudável isso é negativo, mas a dificuldade com os humanos é que é há muitas variáveis que se misturam e é muito difícil isolar uma delas e dizer fazer isto é bom, fazer isto é mau. Talvez as pessoas estejam menos stressadas por estarem em casa com a família, talvez estejam mais stressadas. É muito difícil fazer generalizações.

Os nossos sistemas imunitários são todos diferentes?
Sim. O sistema imunitário de cada pessoa é único e essa particularidade vem da genética, da história de todas as infeções a que foi exposta ao longo da vida e de outros fatores e isto é muito importante porque existe a probabilidade de essas particularidades serem determinantes na forma como respondemos a este novo vírus, mas mais uma vez ainda não sabemos quais. Temos que esperar pelos resultados da investigação científica que está a ser realizada.

Os mais velhos estão mais vulneráveis ao novo coronavírus e a formas mais severas da doença. No seu livro diz que o sistema imunitário não deixa de funcionar com o envelhecimento, mas "avaria". Como assim?
Não é bem avariar, passa a funcionar de forma diferente. Mais uma vez há uma série de coisas por perceber, mas temos muitas hipóteses a serem exploradas. Uma delas é que as pessoas mais velhas têm uma série de células imunitárias capazes de combater infeções antigas, que já conhecem, em caso de voltarem a acontecer, mas menos capacidade de lutar contra novas infeções. Outra é a de que existe um maior nível de inflamação de base nas pessoas mais velhas, o que contribui para responderem pior às vacinas ou a novos tipos de infeções e as torna mais suscetíveis às doenças autoimunes, à medida que envelhecem. Não temos um conhecimento claro do que acontece a nível molecular, mas temos algumas ideias sobre porque é que os sistemas imunitários das pessoas mais velhas funcionam de forma diferente e talvez isso leve a uma resposta sobre porque é que lidam pior, em média, com a covid-19. Pode ter que ver com o facto de não conseguirem criar uma resposta imunitária contra o novo vírus ou de esta ser hiperativada, causando um nível excessivo de inflamação.

Pode-se dizer que o sistema imunitário tem um prazo de validade?
Acho que não é assim tão a preto e branco. Muda com o passar do tempo. As mudanças do corpo humano são muito dinâmicas, quando uma mulher está grávida produz uma série de hormonas que nunca tinha produzido na vida, na adolescência o corpo passa por uma série de mudanças. Portanto, não é que o sistema imunitário desligue com o envelhecimento, simplesmente vai mudando ao longo da vida, à medida que envelhece. Mas mesmo entre a noite e o dia, o sistema imunitário muda de estado e a sua resposta pode ser diferente.

Grande parte do seu livro é dedicado às grandes descobertas científicas feitas no campo da imunidade. Qual é, na sua opinião, a maior de todas?
Penso que uma das mais importantes descobertas - parece tão estúpido agora - é simplesmente a de que existem micróbios. As pessoas pensavam que as doenças eram causadas por deus, por castigos divinos, por bruxaria, por fenómenos naturais, e, na verdade, são germes minúsculos, como os vírus e as bactérias, que causam as doenças e é desta simples descoberta que aparecem as vacinas, a importância da higiene e da água potável e tantas outras descobertas da medicina.

*  Afinal o poder é do bicharoco.

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