17/04/2020

SEBASTIÃO BUGALHO

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Não é o Holocausto, não é
 o apartheid, não é 
o gulag: é a China

As autoridades chinesas selecionam para quarentena obrigatória qualquer um que seja negro, sem outro critério que não a sua etnia, mesmo que tenha os vistos e as autorizações necessárias.

Há menos de um mês, assinei um ensaio no Observador sobre “a verdade sobre a China que não podemos ignorar (mas que vamos ignorar)”. Infelizmente, não demorou muito a confirmar-se que seria assim. Ontem, o Financial Times e a CNN noticiaram que, na China, famílias inteiras de ascendência africana estão a viver nas ruas, com os seus passaportes confiscados, depois de terem sido despejadas das suas casas. Em Guangzhou, o McDonald’s recusou servir um cliente por este ser negro e outros estabelecimentos, como restaurantes e mercearias, estão a vedar a entrada com base na cor da pele de quem quer entrar. As autoridades chinesas selecionam para quarentena obrigatória qualquer um que seja negro, sem outro critério que não a sua etnia, mesmo que tenha os vistos e as autorizações necessárias.

Quero deixar aqui bem claro que não estamos a falar do III Reich, nos anos 30, do gulag estalinista, nos anos 40, ou do apartheid sul-africano, que durou até aos anos 90 do passado século. Estamos a falar do regime de Xi Jinping, hoje, agora, neste momento.

Portugal, um país com relações e responsabilidades especiais em África, não pode ignorar o apelo que o corpo diplomático africano fez, por escrito, a Pequim. Fazê-lo, seria ficar do lado do racismo, da xenofobia e de tudo aquilo que a República portuguesa não representa. O país que parou – e muito bem – para ser solidário com Moussa Marega não fecharia os olhos a estas perseguições étnicas. Até agora, no entanto, não se viu mais do que um desmentido da Agência Lusa, que citou e deu título ao porta-voz chinês que há semanas acusa os Estados Unidos de serem a origem do coronavírus e que já foi, inclusivamente, desautorizado pelo embaixador da China nos EUA. É triste e, sobretudo, é falso.

Quando o ano mudou e inaugurámos uma nova década, escrevi nesta coluna que seria “uma década de intolerância” e que o posicionamento português perante o nacionalismo chinês e indiano “dificilmente poderá permanecer tão entusiástico nos novos anos vinte”. A comunicação social portuguesa e os partidos políticos prosseguem, todavia, tolerantes à desinformação chinesa e silenciosos sobre as sistemáticas violações de Direitos Humanos na China.

Quando o New York Times revelou os dossiers dos campos de concentração em Xinjiang, no final de 2019, nenhum jornal português lhes deu capa. Quando a China expulsou jornalistas de Hong Kong, no mês passado, nenhum jornal português lhes deu capa. Quando o embaixador chinês em Paris culpou a Europa pela pandemia, na semana passada, nenhum jornal português lhe deu capa. Quando o Financial Times e a CNN noticiaram os referidos casos de racismo, nenhum jornal português lhes deu capa.

Em Washington, no memorial do Holocausto, há uma parede enorme com uma frase que nunca vou esquecer. Diz: “Primeiro vieram buscar os socialistas, e eu não falei porque não era socialista. Depois vieram buscar os sindicalistas, e eu não falei porque não era sindicalista. Depois vieram buscar os judeus, e eu não falei porque não era judeu. Depois vieram buscar-me a mim – e já não havia ninguém para falar por mim”.

Tenho pensado muito nessa parede.

IN "OBSERVADOR"
15/04/20
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