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IN "VISÃO"
19/02/20
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Os dois Papas.
E o povo, pá?
Muito para lá da apropriação de um e de outro por terceiros, Bento e Francisco são, em si mesmos, rostos de modos diferentes de ser Igreja no mundo do nosso tempo
Os conservadores dizem que sem Bento não haveria Francisco e que eles
são apenas diferentes no estilo porque, na substância, nada os
diferencia de essencial. Os militantemente avessos a tudo quanto cheire a
fé dizem que se engana quem dê importância demais aos gestos simbólicos
de Francisco e que deles infira uma mudança de rumo porque, dizem,
Bento e Francisco são só farinha do mesmo saco. Esta estranha
convergência entre os defensores da ortodoxia e os que a abjuram dá que
pensar.
Ambos desvalorizam Francisco, uns em nome dos dogmas e os outros
em nome da crítica aos ditos. Eu, por mim, não desvalorizo as imagens
partilhadas pela generalidade das pessoas, crentes e não crentes, de
cada um deles. E essas imagens são marcadamente diferenciadas, se não
mesmo contrastantes. Isso não é fruto da distração ou da ilusão das
pessoas; é fruto da sua sensibilidade e da sua compreensão da realidade
das coisas.
Leonardo Boff, num importante comentário ao filme Dois Papas,
de Fernando Meirelles, situou Francisco como “teólogo da libertação
integral”. Ou seja, a vocação já adulta de Jorge Bergoglio levou-o a
adotar os caminhos da vertente argentina da teologia da libertação
(centrada no povo silenciado), um rumo apesar de tudo diferente da
variante brasileira e peruana (centrada nas estruturas de injustiça
social e na opressão histórica). O “fim do mundo” a que o conclave o foi
buscar foi esse da presença semanal do cardeal de Buenos Aires na
favela Villa Miseria, junto dos pobres e dos seus dramas e esperanças
concretos. A linhagem teológica e a trajetória de vida de Francisco são
vincadamente diversas das de Joseph Ratzinger, que, ao escolher Bento
como nome papal, sinalizou bem o seu eurocentrismo e o seu foco na
defesa da cristandade contra o secularismo europeu. E o facto de, antes
de ser Bento, ter sido prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé
centrou essa defesa da cristandade na depuração e na vigilância
doutrinárias contra os “desvios”.
São dois homens da mesma Igreja e isso une-os? Claro que sim. Mas não
é só o estilo que os diferencia. Muito para lá da apropriação de um e
de outro por terceiros, Bento e Francisco são, em si mesmos, rostos de
modos diferentes de ser Igreja no mundo do nosso tempo. De um lado, a
representação da Igreja como uma cidadela cercada de inimigos que urge
defender preservando a ortodoxia; do outro, a Igreja do limiar (como lhe
chamou Yves Congar) que não descura a doutrina, mas renuncia a
fronteiras que a entrincheiram e cuja única obsessão é a salvação das
vidas concretas, as de fora e as de dentro. De um lado, uma Igreja
tabeladora dos comportamentos individuais, uma Igreja sobretudo de
combate ao pecado da impureza pessoal e defensora de uma moral
biologista; do outro, uma Igreja empenhada na denúncia das estruturas de
pecado que geram pobres a quem, por o serem, é apoucada a humanidade e
que, às tabelas de preceitos, contrapõe a consciência pessoal e o
livre-arbítrio como instâncias irredutíveis de decisão moral.
Por estes dias, especula-se sobre o alinhamento de bispos e cardeais
com Bento ou com Francisco, como se estivéssemos em vésperas de um
daqueles congressos partidários em que se contam barões de um lado e do
outro para adivinhar quem vai ficar no poder. Para esse viés
clericalista, ao povo – essa massa informe de não barões – resta
assistir com aplausos e vaias ao jogo entre os príncipes.
Ora, a
conversão da Igreja à centralidade dos pobres pretendida por Francisco
não terá como intérprete principal o clero, mas o povo. Em vez de
perguntarmos se os padres e os bispos estão com Francisco, perguntemos
que palavras e que gestos estão a ter as comunidades de católicos para
mudar a economia que mata e a política que a naturaliza. É aí que se
jogará uma diferenciação que irá mesmo além do estilo. Quando a notícia
for a de uma mobilização dos católicos em favor da transformação
concreta das regras da economia que produzem pobres e destroem a nossa
casa comum, então aí a mundividência de que Francisco é o rosto mais
destacado terá ganho a hegemonia que agora disputa.
IN "VISÃO"
19/02/20
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