04/07/2019

JOÃO CEPEDA

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Carta aberta 
aos activistas antiturismo

Portugal é um dos países com as fronteiras mais antigas do mundo e um dos poucos que se pode chamar estado-nação com propriedade e orgulho na sua unidade cultural. Os "charters" de chineses podem mudar clubes de futebol? Talvez. Mas dificilmente desfazem o que D. Afonso Henriques fez.

Em primeiro lugar, obrigado. Um país que se preze tem de saber agradecer aos que se preocupam com o que é de todos. É cada vez mais raro encontrar quem o faça, pelo que sem rodeios nem cinismos reconheço a bondade da vossa luta. O problema é estarem errados.

Pelas reacções ao primeiro texto que publiquei neste jornal - em que me limitava a dizer o óbvio: o turismo vai continuar a crescer a velocidade atómica independentemente da nossa vontade - percebi que o conjunto de pregões da vossa luta está longe de ser vazio. Há cada vez mais gente, gente carente de causas, que realmente acredita nestas máximas sobre o turismo-papão. Qual a verdadeira razão não sei, posso apenas tentar adivinhar, mas para que o problema não seja de informação vou tentar rebater alguns dos lamentos mais frequentes.

Um: o turismo é o grande responsável pela gentrificação. Falso. A gentrificação é a consequência obrigatória de todo o tipo de progresso, em qualquer cidade do mundo, talvez desde o Império Romano. Com e sem turismo. Está nos livros, está provado e não é controverso. É claro que como sociedade podemos escolher rejeitar o progresso, mas tenho a sensação de que num país que há tantos anos engole a seco a palavra crise não seria a ideia mais popular.

Dois: o turismo está a criar uma bolha imobiliária. Este é o engodo que os estrangeiros adoram. Enquanto gritamos que tudo vai implodir ou rebentar pelas costuras (riscar o exagero preterido), franceses, libaneses, americanos, espanhóis... todos os que se passeiam pelo nosso país à procura de negócios, compram alegremente o que vêem e gostam. Sem qualquer oposição dos empresários locais, que não se cansam de repetir que está tudo caríssimo. E o medo vai comandando a vida.

Sobre isto convém acrescentar que os preços de Lisboa e Porto não estão ao nível de Madrid e Paris (é até um pouco ridículo dizer isto, mas de tanto ser repetida esta fantasia começa a ganhar fãs) e que há pouco mais de quatro anos estavam ao nível de cidades como Brescia e Lugo. Se alguém acha que um cataclismo nos levará de volta a esse cenário, os tais estrangeiros contraem-se de pena (e riso) e continuarão a ajudar-nos fazendo o que mais gostam: comprar barato.

Três: o turismo é uma ameaça à nossa identidade. Os livros não estão na moda, mas é fácil "googlar" alguns dados interessantes sobre esta terrível ameaça, como o facto de Portugal ser um dos países com as fronteiras mais antigas do mundo e um dos poucos que se pode chamar estado-nação com propriedade e orgulho na sua unidade cultural. Os "charters" de chineses podem mudar clubes de futebol? Talvez. Mas dificilmente desfazem o que D. Afonso Henriques fez.

Quatro: o turismo é perigoso porque é uma moda passageira. Se considerarmos que uma década é um período passageiro pode ser que haja aqui, finalmente, um pouco de razão. Eu contraporia que dez a quinze anos é o que este país precisa para fazer o que não foi feito nos últimos 100 e que não há qualquer razão para achar que o Estado (juntas de freguesia, câmaras, organismos públicos, governo...) é tão míope que deixará escapar a oportunidade do século. E, se for esse o caso, espero contar convosco para exigir mais e melhor. Porque é aí que deve estar a luta de todos. Na protecção do ambiente e das vítimas do progresso, com medidas sociais inteligentes e tão inovadoras como as que geram dinheiro. Demonizar a mudança que mais trabalhos trouxe na última década é que não vai resolver os problemas.

Não se param aviões com as mãos.

* Presidente e diretor criativo do Time Out Market

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
01/07/19

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