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HOJE NO
"i"
Identidade de género.
Quando os rótulos “feminino” e
.“masculino” não chegam
.“masculino” não chegam
Há pessoas que não se identificam com o género
feminino nem masculino, mas por cá são poucas as respostas. O i falou
com quem trabalha com questões de género para saber o que falha e o que é
preciso fazer em direção a uma maior aceitação das diferentes
identidades.
O momento de ir à casa de banho num museu,
restaurante ou qualquer outro espaço é, para muitos, uma situação
automática: os símbolos de mulher e homem nas portas dão a resposta
relativamente a qual usar. Mas essa resposta está longe de servir a
todos. “A identidade de género pode ou não estar relacionada com o nosso
sexo biológico. Enquanto o género é algo social, é o assumir e
desempenhar papéis sociais que são definidos e entendidos pela sociedade
como pertencendo maioritariamente ao género masculino ou feminino, as
nossas características sexuais ou o nosso sexo biológico é algo com que
nascemos. Posso nascer homem, ter características sexuais masculinas
primárias e secundárias e, no entanto, a minha identidade de género ser
feminina, independentemente de o meu corpo ser biologicamente
masculino”, explica ao i João Valério, da direção da ILGA – Intervenção
Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo.
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Há, por isso, pessoas que não se identificam nem com o
género feminino nem com o género masculino e que encontram no género
fluido a melhor definição da sua identidade. “Existem pessoas que não se
reveem totalmente dentro dos papéis sociais que a sociedade entende
como pertencendo ao género feminino e ao género masculino. Não se sentem
nem de um nem de outro. Costumo dizer que nós podemos ver o género como
um espetro, uma linha reta com dois polos, em que num dos lados estão
aqueles comportamentos que mais se associam ao machismo extremo e, do
outro lado, aquela delicadeza que a sociedade entende que é das
mulheres. E se nós entendermos isto como uma linha reta, como um
espetro, o género fluido é exatamente isto, variarmos neste espetro ao
longo do dia, ao longo do mês, ao longo da vida”, especifica o
responsável da associação.
Sara Forte, psicóloga e coordenadora do Centro Gis, uma associação
que reúne várias respostas para a população LGBTI, complementa a ideia: o
género fluido é, elucida, apenas uma das identidades de género, entre
outras, que “fazem parte do conceito não binário – isto é, o termo
‘guarda-chuva’ para definir e agregar várias identidades de género que
não sejam exclusivamente homem ou mulher/feminino ou masculino. Cada
‘vareta’ diz respeito a um subconceito, entre eles o género fluido”.
Fora do círculo das associações e do ativismo, a diversidade na
identidade de género não tem vindo a ser ignorada. Questionada pelo i, a
Ordem dos Psicólogos Portugueses avança através de fonte oficial que
“está a finalizar as linhas orientadoras da intervenção psicológica com
pessoas LGBT”, que serão publicadas em breve. E deixa a nota: “Contudo, e
conforme a própria Constituição portuguesa, ninguém pode ser
privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou
isento de qualquer dever em razão da sua identidade de género e
orientação sexual. Devido a algumas questões sociais e históricas, ainda
existem situações que poderão criar problemas psicológicos a pessoas
que não se identificam com nenhum dos géneros”. Lá fora, a World
Professional Association for Transgender Health (WPATH), por exemplo –
uma organização internacional que reúne psicólogos, médicos, advogados,
assistentes sociais e outros profissionais de diversas áreas –, tem
vindo a debruçar-se sobre o assunto e disponibiliza mesmo online um
documento intitulado “Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com
variabilidade de género”. Também a União Europeia, através do Conselho
da Europa, tem vindo a emitir várias recomendações aos Estados-membros
relativas à identidade de género, como evidencia o relatório temático do
comissário de Direitos Humanos do Conselho da Europa “Direitos Humanos e
Identidade de Género”.
Que respostas existem?
Tanto a ILGA como o Centro
Gis admitem que cada vez mais pessoas não binárias ou especificamente de
género fluido as procuram. João Valério salienta, no entanto, que “isso
não quer dizer que cada vez existam mais pessoas nesta posição;
significa, sim, que as pessoas neste momento percebem que existem
estruturas que podem ter abertura para falar sobre o tópico”.
Segundo Sara Forte, “a grande diferença incide sobretudo ao nível da
informação e dos serviços existentes hoje em dia, bem como leis
específicas que protegem e salvaguardam estas pessoas, o que lhes
permite encontrar respostas para as suas questões e, consequentemente,
lhes dá a força e coragem suficientes para saírem dos seus ‘armários’ e
não terem medo ou vergonha de serem e assumirem quem são”. Para a
psicóloga e professora universitária Gabriela Moita, que tem vindo a
estudar identidade de género mas também sexualidade, “há mais procura, o
que se explica porque há mais abertura para se falar sobre as coisas”,
enfatizando que sempre existiram pessoas que não se identificam com os
géneros instituídos.
Ambas as associações disponibilizam apoio psicológico e a ILGA tem
mesmo um grupo vocacionado para pessoas não binárias. “Existem pessoas
que, pela discriminação social, sofrem uma série de questões do foro
psicológico e que precisam de acompanhamento, mas há outras que não e
que procuram simplesmente um grupo de apoio, uma rede de comunicação.
Fazemos encontros periódicos, abertos a estas pessoas, em que discutimos
vários assuntos e as pessoas têm abertura para falar, tirar dúvidas
sobre como lidar com os pais, por exemplo, como contar, etc.”, explica
João Valério.
Se as respostas sociais existem, o mesmo não pode dizer-se das
respostas legais: para quem não se identifica nem com o género feminino
nem com o género masculino não existem alternativas. Lá fora, porém, o
cenário é diferente e vários países já incluíram nos seus documentos de
identificação civil um terceiro género, neutro, para quem não se
considera nem de género masculino nem feminino: Austrália, Bangladesh,
Canadá, Dinamarca, Alemanha, Índia, Malta, Nepal, Nova Zelândia,
Paquistão e alguns estados norte- -americanos. Na cidade de Nova Iorque,
por exemplo, a câmara municipal aprovou mesmo uma lista de 31 géneros,
em 2016 (ver imagem na página seguinte), com o objetivo de combater a
discriminação no local de trabalho, em casa e nos espaços públicos. Este
ano passou a ser possível o registo civil com um terceiro género. Já em
fevereiro, uma decisão da justiça garantiu que qualquer pessoa pode
usar as casas de banho públicas em função do género com que se
identifica. No Reino Unido, a questão é contraditória: legalmente, os
géneros feminino e masculino são as duas únicas hipóteses na hora do
registo, mas as organizações governamentais e as empresas aceitam o
título Mx. em vez de Mr. ou Mrs. para pessoas não binárias ou de género
fluido. Além disso, em 2016 foi publicada uma lei que obriga as prisões
britânicas a reconhecerem e respeitarem os reclusos de género fluido ou
não binário.
A solução de um terceiro género, contudo, parece não ser a melhor aos
olhos da ILGA. “Temos algumas dúvidas relativamente a soluções que
foram adotadas por outros países. Temos vindo a discutir a ausência dos
marcadores de género feminino e/ou masculino e/ou o que seja no nosso
documento de identificação civil, até porque acreditamos que isso não
tem qualquer tipo de relevância. Defendemos neste momento a ausência de
marcadores de género para quem assim o entender; não é colocar-se um
terceiro género, é optar-se pela ausência de marcadores de género para
quem não queira colocar nem masculino nem feminino”, explica João
Valério.
Independentemente da existência dessa alternativa, as pessoas de
género fluido – não binárias, em geral – enfrentam diariamente algo
incontornável: o facto de vivermos numa sociedade binária. “Aqui é que
reside a grande questão. Nós, desde as profissões aos anúncios, aos
cortes de cabelo, vivemos impregnados na ideia de masculino ou feminino.
Vivemos numa sociedade binária e que ainda não fez o caminho”, assinala
João Valério.
A psicóloga Gabriela Moita vai mais longe: “O problema não são estas
pessoas, o problema é a sua não aceitação pela sociedade. Porque é que
as pessoas têm resistência a esta realidade?”, questiona.
A especialista nota, contudo, que “quer a comunidade em geral quer a
comunidade científica e académica estão atentas e é uma questão que está
a ser cada vez mais tratada”.
A binariedade, como nota João Valério, vai muito além da questão das
casas de banho – algo que, nas instalações da ILGA, foi resolvido de
forma simples: existe apenas uma, que é usada por todas as pessoas. A
binariedade passa também, por exemplo, pela linguagem – que se
caracteriza pela dicotomia entre feminino e masculino e que aplicamos em
função do sexo da pessoa, se é mulher ou homem – e os seus sinais
evidenciam-se muito cedo. “Há escolas em que os bibes são rosa ou azuis,
são obrigatórios, não há outros e não se pergunta aos pais qual é a cor
que querem [que o filho ou a filha usem]. É o infantário que decide”,
lamenta o responsável da ILGA.
Aceitar a diversidade
A ausência de respostas legais
e a discriminação da diversidade são problemas com os quais as pessoas
de género fluido se debatem todos os dias. Mas por onde começar para
mudar mentalidades? O ponto de partida, para o responsável da ILGA, deve
ser a mudança da lei da identidade de género, isto porque, acredita, “a
lei encerra um sentimento pedagógico na sociedade”. João Valério
exemplifica com a interrupção voluntária da gravidez, o casamento civil
entre pessoas do mesmo sexo ou a possibilidade de as pessoas alterarem o
nome e o género – a partir do momento em que foram legisladas, essas
questões criaram um “sentimento pedagógico na sociedade, que as
normalizou e contribuiu para a inclusão”, defende. Ma,s depois deste
primeiro passo, há ainda um longo caminho a percorrer na sociedade.
“Isso sim, é sempre o mais complicado e demora mais tempo porque se
trata da erradicação da discriminação, envolve uma série de trabalhos
contínuos, em especial, mas não só, com profissionais de saúde e de
educação, para estarem preparados para as especificidades destas
pessoas”, defende.
Na comunicação em sociedade, o uso de uma linguagem neutra é outro
passo em direção à não discriminação destas pessoas: perguntar, por
exemplo, “qual é o seu nome?” em vez de “como é que o/a senhor/a se
chama?”. Não tirar conclusões tendo por base o sexo da pessoa é um passo
certo em direção ao respeito e à aceitação.
Da parte das escolas, o interesse pela diversidade e por saber como
abordá-la tem vindo a aumentar. “Cada vez mais as escolas procuram ter
sessões para educar para a diversidade e para os direitos humanos. É uma
tendência crescente e, normalmente, a procura vem no seguimento de
situações identificadas na escola. Mas nem sempre, às vezes é porque é
uma bandeira educar para a diversidade e os direitos humanos. No
entanto, há muitas escolas que não têm ainda abertura para tal”, refere
João Valério.
Relativamente ao papel dos professores, Maria João Lobo Antunes,
professora assistente na Towson University, em Baltimore, fala do que
acontece hoje de diferente nos EUA em relação à aceitação das pessoas
não binárias e da diversidade na identidade de género. “No início do
semestre recebi uma carta do Office of Student Diversity and Inclusion a
informar-me que um dos meus alunos queria ser referido em relação aos
pronomes de uma certa forma, e eu aceitei, claro. Os próprios alunos
informam-nos dos pronomes que querem que usemos. Isso, claro, para nós,
professores, requer algum treino” contou ao i a professora portuguesa
que leciona quatro cadeiras em Baltimore: Criminologia, Imigração e
crime, Métodos de investigação e pesquisa e Bairros e crime.
Esta, contudo, não foi a única vez em que foi confrontada com uma
situação desse género. “Foi-me pedido para escrever uma carta de
recomendação para um aluno e o nome no email dele tinha mudado, bem como
o nome na candidatura ao estágio para a qual ele me estava a pedir a
carta de recomendação. Mudou de um nome masculino para um nome bastante
neutro, e eu, em vez de submeter a carta de recomendação partindo do
pressuposto de que ele se identificava com um género ou com outro,
simplesmente mandei-lhe um email e perguntei-lhe qual o tipo de pronome
que queria que usasse na carta. Ele ficou superfeliz, agradeceu--me e
disse-me que estava a submeter a candidatura usando pronomes masculinos,
e então eu referi-o como masculino”, recorda Maria João Lobo Antunes.
Mas a questão ultrapassa mesmo a esfera dos alunos e há até professores
que colocam, por baixo das assinaturas dos emails, os pronomes pelos
quais desejam ser tratados. “Eu, por acaso, ainda não tenho isso na
minha assinatura da faculdade, já pensei em pôr mas não pensei ainda
como”, refere ao i Maria João Lobo Antunes.
Visibilidade
Lá fora não faltam exemplos de caras
conhecidas que têm vindo a identificar-se publicamente como de género
fluido. É o caso, por exemplo, do músico Sam Smith. A vencedora da
Eurovisão em 2014, Conchita Wurst – que recentemente foi notícia por ter
mudado de visual, pondo de parte o longo cabelo preto –, identifica-se
como não binária. E há até quem fale publicamente sobre a intenção de
criar os filhos sem se basear em estereótipos de género – é o caso,
segundo a “Vanity Fair”, de Meghan Markle e do príncipe Harry. À
publicação norte-americana, amigos do casal disseram que o quarto da
criança está decorado em tons pastel e que Meghan admitiu que pretende
criar a criança de forma “fluida”.
* Pelo que se percebe a maioria da humanidade pratica desumanidades contra minorias que també são humanidade, não damos para o peditório do preconceito.
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