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O executivo de António Costa representa talvez o mais denso caso de cruzamentos familiares no Governo e nos órgãos de soberania. Que se saiba, o primeiro-ministro não cometeu, para realizar tal façanha, nenhuma ilegalidade. Mas tem de ouvir o que se pensa dele e desse facto. Não pode por isso considerar que lhe querem mal. Como não pode simplesmente dizer que os outros fizeram pior!
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Questões de família
Todos aceitam os laços familiares, desde que sejam os seus. Todos condenam os vínculos de parentesco, desde que sejam os dos outros. É um pouco como futebol. O principal critério da legalidade e da moralidade é a cor da camisola. Na política, é o nome do partido.
A democracia portuguesa vive mal com as famílias. Herdou as cunhas do
antigamente, os empenhos, o favor, uma mãozinha, o jeito e o
empurrãozinho… Com a democracia, estes hábitos foram modernizados e, por
acréscimo, reorganizados, isto é, passaram a ter uma componente partidária essencial.
Com a crença, por muitos cultivada, de que “quem ganha as eleições, tem
direito a nomeações”! Há mesmo quem chame a isso “ética republicana”!
Na história moderna portuguesa, do fim da monarquia à democracia,
passando pela Primeira República e pelo Estado Novo, vivemos agora
certamente o ponto mais alto de promiscuidade familiar e partidária, de envolvimento de laços familiares na política, de entrosamento de parentesco com os órgãos de soberania e a alta administração pública.
O executivo de António Costa representa talvez o mais denso caso de cruzamentos familiares no Governo e nos órgãos de soberania. Que se saiba, o primeiro-ministro não cometeu, para realizar tal façanha, nenhuma ilegalidade. Mas tem de ouvir o que se pensa dele e desse facto. Não pode por isso considerar que lhe querem mal. Como não pode simplesmente dizer que os outros fizeram pior!
Há, aliás, precedentes extraordinários. Na China, Mao Tsetung e sua
mulher. Os irmãos Castro em Cuba. Os irmãos Kennedy nos Estados Unidos.
Donald Trump com mulher, filha e genro na Casa Branca. Juan Perón e suas
mulheres na Argentina. Kadhafi e filhos na Líbia. Em França, François
Hollande e mulheres. António Costa tem esse direito, nada impede nas
leis portuguesas de nomear familiares, casais e parentes. Tem é de ouvir
o que dele se diz e dele se pensa.
E não se pensa muito bem. O mal-estar é enorme. Toda a gente se sente incomodada. Mesmo os que beneficiam. Entre estes, uns tantos reagem
à bruta, isto é, defendem-se, atacam os outros, agridem e ameaçam, o
que apenas revela não estarem de consciência tranquila, nem terem
argumentos. Outros ficam envergonhados, julgavam que não se daria conta e
esperavam que não se visse ou não soubesse.
Costa e os dirigentes
do PS já cometeram dois erros gravíssimos! Primeiro, disseram que “os
outros também”, isto é, reconheceram que era mal feito, mas que o mal
dos outros justificava o seu. Segundo, tentaram compensar as suas
nomeações de parentesco com a passagem, promovida por outros governos,
de ministros para as empresas privadas. Que dizer, mais uma vez,
tentaram desculpar o seu mal com o mal dos outros, isto é, simplesmente,
reconheceram o seu mal!
Verdade é que se confirmou que quase todos os anteriores governos e
quase todos os partidos, na oportunidade, fizeram algo de parecido. Sem a
mesma densidade e de grau diferente. Mas fizeram-no. Vários contributos
para este debate recordaram casos idênticos em quase todos os governos.
O problema é que de facto nunca se tinha assistido a esta quantidade.
Nem a este grau de importância. Houve um tempo em que era hábito as
mulheres dos ministros e dos deputados serem chefes de gabinete e
adjuntas de outros ministros e deputados. É também um hábito de alguns
eurodeputados contratarem para seus assessores, consultores e
assistentes os filhos, as mulheres, os maridos e outros parentes. Agora,
no coração da política, no Conselho de Ministros e nos grupos parlamentares, é prática corrente. É moda e é tendência.
Quase
todos os partidos, portanto. Uns mais do que outros, pois claro, até
porque há razões sociais para este fenómeno. Talvez o PS mais do que os
outros, com certeza. E talvez o PCP menos do que os outros. Mas, com o
PCP, as coisas são diferentes. Na verdade, este partido condena o
enriquecimento individual, o que quer dizer que não tolera quem ganhe
com a política. Por outro lado, não admite a ideia de que há outras
formas de exercício do poder e de avanço na carreira política que não
sejam as decisões do comité central e da comissão de quadros. Verdade é
que, pelas más razões, o PCP escreve direito. Ainda bem.
Voltemos aos partidos burgueses e aparentados. Todos aceitam os laços familiares,
desde que sejam os seus. Todos condenam os vínculos de parentesco,
desde que sejam os dos outros. É um pouco como futebol. O principal
critério da legalidade e da moralidade é a cor da camisola. Na política,
é o nome do partido.
Não se pense que se trata sobretudo de enriquecimento e de dinheiro, de
nepotismo e de corrupção. Tudo isso é verdade, em doses e proporções
variáveis. Mas o verdadeiro problema é o da confiança política.
Um ministro, um primeiro-ministro e um secretário de Estado têm
evidentemente muito mais confiança na mulher, no marido, nos filhos, nos
cunhados e nas primas do que em gente estranha. Esse é o ponto. As
questões essenciais são as da confiança e da dependência. Não bastam o
cartão do partido e os empregos comuns. Não é suficiente a passagem em
conjunto pelos governos, pelos parlamentos, pelas empresas públicas,
pelas administrações e pelas câmaras: é necessário acrescentar mais uma
condição de confiança e uma garantia de dependência. As certidões de
casamento e de nascimento, os projectos de vida e os testamentos ajudam
muito. São problemas de confiança e de poder, não de mera máfia ou
corrupção.
Entre
os argumentos que mais surpreendem, alguns são particularmente
viciosos: “Não somos só nós, eles também”! Ou ainda, por parte de
comentadores e jornalistas complacentes, “não são só estes, há dez anos
também era assim!”. A ideia de que o nepotismo e a corrupção de uns
justificam e desculpam os de outros é sinistra a todos os títulos. Mas
tem um efeito salvador: trata-se da maior admissão de culpa que se possa
imaginar! Quando um socialista ou um bloquista vem dizer, e tantos
foram, que o PSD e o CDS “também fizeram”, estão a prestar um serviço à
democracia. Porque se denunciam e admitem a sua própria culpa. Assim
revelam mais casos e ajudam à transparência.
Não há soluções
fáceis para estes problemas. A opinião pública e a liberdade podem
ajudar. A instrução e a cultura também. E as eleições, talvez. Mas as
leis não servem para nada. Proibir a parentela na política e no governo?
Proibir o quê? De nomear parentes? Para que funções? Até que grau? Não
há proibições imagináveis. Mas mete dó. Ver a política dos rebanhos e
dos bandos, das tribos e dos gangues, das castas e das claques,
imiscuir-se na política democrática faz quase desesperar da condição de
português do século XXI. Era bem melhor quando as questões de família
eram um ingrediente da grande ópera!
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