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IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
01/07/18
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Mudar de pele
Um bom jornal sabe que pode ser fuzilado e avança pela força das ideias que transporta. Morre e renasce por elas.
Há coisas do diabo. O meu último dia como jornalista, foi o primeiro
do "Diário de Notícias", o novo semanário nacional. Uma nova pele para
os dois, embora a substância não mude para ambos.
Fazer
perguntas, dar respostas, contar histórias, procurar estabelecer uma
ligação ao público, leitor, ouvinte e espectador. Conversar com ele,
fazer a ponte que liga e corporiza a nossa comunidade, expor e revelar,
mas também escolher os assuntos que nos ajudam a dizer (resumir,
contrariar, detestar, duvidar) quem somos, o que desejamos para nós e
para os outros, o que estamos ou não dispostos a arriscar por essa coisa
maior do que a nossa vaidade pessoal e profissional. Começa ou pode
começar na vaidade, até que a humana mediocridade cede a essa força
infinitamente maior. Mais poderosa. Mais generosa. O nosso grau de
compromisso.
Um jornal é isso: um compromisso que nos eleva,
ultrapassa sem misericórdia e, no fim, nos transcende. É uma expressão
de liberdade - ou então não é nada disso e só serve para corporizar o
mal e o que está errado. Não é uma resma de folhas diárias. Não se
define pelo meio e periodicidade, embora isso facilite alguma coisa.
Carateriza-se pelo alcance da informação recolhida e, havendo talento e
esforço, muito talento e muito esforço, pela informação bem tratada.
Isto sim, aquilo não, não agora, aquilo jamais. Ou seja, pela
inteligência, ousadia e capacidade de risco.
O impulso para quase tudo
pôr em causa e, assim, apenas assim, defender o essencial. Dêem-me um
grande "Diário de Notícias" mensal, cheio de ideias e de pensamento
disponível - do fim da rua ao fim do mundo, nessa magnífica frase âncora
da TSF -, e ele mexerá comigo todos os dias, diariamente, sem que eu
sequer me aperceba de onde soprou esse impulso criador. As ideias formam
correntes invisíveis que de quando em quando frutificam numa ação ou
numa oposição. A isso se chama jornalismo.
Eu não gosto de
escrever, mas de ter escrito, uma frase que li num sítio qualquer e que
resume a dificuldade deste trabalho artesanal. Não é conteúdo - essa
palavra é boa para definir o interior de um rolo de carne. Não sou e
nunca fui chef de cozinha, fui editor, trabalhei sobre as ideias dos
outros à procura de alguma coisa de único. Desconheço o que é conteúdo,
repudio quem queira transformar a informação numa estúpida linha de
montagem em linha reta. Num mundo redondo e cheio de curvas, de altos e
de baixos, pleno de relevos e de espessura, a informação resulta da
meticulosa carpintaria das palavras e das imagens que se juntam para
contar uma ideia que se mantém de pé uns dias, semanas ou até anos.
O
prazo de validade: li no Diário de Notícias... é uma afirmação
intemporal que nos dá permanência e oferece oportunidade. Haverá melhor
coisa do que ter a oportunidade? Um bom jornal tem lá dentro - deveria
ter numa linha qualquer, rogo-vos para que tenha - essa promessa que nos
impele a mexer e a reagir. Essa galhardia contra o banal e o injusto e o
que está errado e que tem de mudar, seja em que escala for. Um jornal
não é uma rede social. Um jornal é um animal social, liberta-nos da rede
que nos prende, constrange, policia e impede de termos voz própria e
singular. Não é um coro, não é uma turba de linchamento, não é um manual
de regras, é também um ato de subversão.
Um bom jornal sabe que
pode ser fuzilado e avança pela força das ideias que transporta. Morre e
renasce por elas. Não por vaidade, já o disse, a vaidade entorpece -
matem os vossos bebés é a melhor sugestão que se pode dar a quem
escreve: se soa demasiado bonitinho e acrobático, apaguem, não somos
trapezistas, escreveu o grande editor Terry McDonell. Não por vaidade,
dizia eu, mas talvez por sabermos que há outra edição logo a seguir. E
depois fica a maldita pergunta: será que fiz o que devia ou fui longe
demais?
P.S. Um agradecimento especial ao André Veríssimo,
diretor deste importante jornal - 'keep on rockin' - e ao Raul Vaz, que
me convocou a escrever aqui, e também à Cofina, onde comecei e cresci. A
última palavra, a mais importante, e o derradeiro agradecimento (sem
ponto final) fica para os leitores. O leitor.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
01/07/18
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