O discurso de May
causa dúvidas
Continua por clarificar a questão das garantias jurídicas dos cidadãos europeus que trabalham no Reino Unido. Estarão protegidos pelo Tribunal Europeu de Justiça? May nada nos disse sobre isso.
O discurso de Theresa May esta sexta-feira em Florença era aguardado
com muitas expectativas, tanto no Reino Unido como nas capitais
europeias. O discurso clarificou três pontos importantes, mas deixou
muitas dúvidas. Há dois conjuntos de questões nas negociações entre o
Reino Undo e a União Europeia. Em primeiro lugar, as chamadas questões
para concretizar o divórcio. Em segundo lugar, a natureza do futuro
relacionamento.
Comecemos pelo divórcio. Ao contrário das especulações dos últimos
dias, a primeira-ministra britânica não referiu nenhuma soma concreta.
Mas clarificou um ponto importante. Aceitou que o Reino Unido deve pagar
uma soma à União Europeia, fruto de compromissos assumidos no passado,
sobretudo em relação ao orçamento comunitário. Implicitamente, May
também aceitou que o Reino Unido terá que pagar pelo acesso ao mercado
único durante um período de transição de “dois anos”.
Esta distinção é
fundamental para os negociadores europeus. Há duas contas para os
britânicos pagarem. Uma refere-se a compromissos passados. A outra diz
respeito ao acesso ao mercado único durante dois anos de transição. Mas,
apesar desta clarificação, as somas a pagar ainda deverão ser
negociadas. E em questões de dinheiro o mais difícil são sempre os
números.
Em relação às outras duas questões do divórcio, May não acrescentou
muito. No caso dos direitos dos cidadãos europeus no Reino Unido,
reafirmou que são bem vindos e que poderão continuar a trabalhar no
território britânico. Mas continua por clarificar a questão das
garantias jurídicas desses cidadãos. Estarão protegidos pelo Tribunal
Europeu de Justiça? A primeira-ministra britânica nada nos disse sobre
isso. Também nada acrescentou em relação ao problema das fronteiras com a
Irlanda, a terceira questão do divórcio.
Passemos agora ao futuro. Theresa May sublinhou a vontade britânica
em manter uma cooperação muito próxima com a União Europeia nas áreas da
segurança interna e da política externa e da defesa. Londres reconhece
que britânicos e europeus enfrentam ameaças comuns, como o terrorismo e a
instabilidade geopolítica nas regiões fronteiras da Europa, e
beneficiam se as enfrentarem juntos. Do ponto de vista negocial, dado o
peso diplomático e militar dos britânicos, é inteligente colocar a
segurança, a política externa e a defesa no centro das negociações.
A terceira clarificação foi a necessidade de um período de transição
após Março de 2019, em princípio a data de saída do Reino Unido, para a
relação económica entre britânicos e europeus. Teoricamente, há quatro
cenários possíveis. O Reino Unido desiste da saída. Este cenário apenas
existe em teoria (e na cabeça de Tony Blair). Hoje, May rejeitou tal
cenário e afirmou claramente que o Reino Unido vai sair da União
Europeia em Março de 2019. Além disso, não há condições políticas no
Reino Unido para reverter a decisão do referendo. Nenhum partido defende
um segundo referendo antes de Março de 2019.
O segundo cenário seria uma saída sem acordo, o chamado “hard Brexit”.
O discurso de May rejeitou igualmente essa opção mais radical, mas
durante o período de questões e respostas, afirmou, de novo, “no deal is better than a bad deal”. Ou seja, o “hard Brexit” não foi completamente afastado. É, no entanto, claro que o governo britânico não o deseja.
O terceiro cenário é o preferido de May. Um período de transição de
dois anos durante o qual o Reino Unido continua no mercado único e na
União Aduaneira. Durante esse período, o Reino Unido e a União Europeia
negoceiam um tratado para uma parceria especial. O problema é que não é
nada fácil retirar o Reino Unido da União Europeia e, simultaneamente,
ficar no mercado único e na União Aduaneira. Não custa dizê-lo, mas é
difícil fazê-lo. Será quase impossível negociar esse acordo de transição
e simultaneamente o divórcio até Março de 2019. Haveria uma solução
mais fácil. O Reino Unido regressaria à EFTA ficando assim no Espaço
Económico Europeu, ou seja, no mercado único. O problema é a natureza
transitória desta solução. May foi clara e afirmou que, após o período
de transição, o Reino Unido não continuará no mercado único. Ora, o
Reino Unido não pode regressar à EFTA durante dois anos e depois sair.
Por estas razões, julgo que devermos considerar seriamente um quarto
cenário. O Reino Unido pede para adiar a saída da União Europeia para
2021 até concluir um acordo com a União Europeia.
O AUTOR
Nasci em Luanda, em 1965. Licenciei-me em Relações Internacionais na Universidade Lusiada, depois fiz o Mestrado também em Relações Internacionais na Universidade de Kent, no Reino Unido e, a seguir, o Doutoramento em Relações Internacionais e Ciência Politica na London School of Economics. Em Portugal dei aulas de Relações Internacionais e de Ciência Política na Universidade Lusíada, na Universidade de Coimbra e no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica. Fui assessor e, depois, Director do Instituto da Defesa Nacional, entre 2004 e 2006. Fiz igualmente investigação no Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI). Em 2006, fui trabalhar para a Comissão Europeia, como assessor político de Durão Barroso, onde permaneci até ao final de 2012. Em Janeiro de 2013, regressei a Londres, para trabalhar no sector privado numa consultora, a Holdingham Group.
IN "OBSERVADOR"
22/09/07
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