24/09/2017

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HOJE NO 
"EXPRESSO"
Francisco George: 
“Não vacinar os filhos 
é como infligir maus-tratos” 
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No dia 20 de outubro chega ao fim a carreira do popular diretor-geral da Saúde. Durante mais de uma década alertou sem alarmar. Sai com o lamento de não ter tido deputados mais audazes

Falta um mês para ficar em silêncio a voz mais ouvida sobre a saúde dos portugueses. Depois de 17 anos na Direção-Geral da Saúde, Francisco George vai reformar-se por limite de idade para continuar a servir o bem público. Prestes a completar 70 anos, o seu rosto ficará associado a combates contra o mal: do tabaco, do sal ou do açúcar. Sem receio do que é politicamente correto, afirma que não vacinar as crianças é como infligir-lhes maus-tratos e critica a irresponsabilidade dos pais que impõem dietas alternativas. Com pensamento à esquerda, garante que Marcelo Rebelo de Sousa veio dar o carinho que faltava depois de um Presidente, Cavaco Silva, “muito frio e muito distante”. De uma só vez, a vida roubou-lhe a mulher e uma filha. Mas não os sonhos. É dali que lhe vem o ânimo para continuar a melhorar a vida dos outros.

Cresceu e formou-se em Lisboa mas foi para o Alentejo. Porquê?
Para não ferir a sensibilidade do meu pai. Ele era médico e diretor do Hospital de Santa Marta, era o meu diretor, e para eu mudar de carreira tinha de apresentar um desejo oposto à medicina interna que estava a seguir porque não fazia sentido ficar em Lisboa no internato da especialidade com outro diretor. Um dia cheguei ao pé dele — nunca punha em causa as grandes opções dos filhos — e disse-lhe que ia mudar para saúde pública e que já tinha falado com Arnaldo Sampaio, então diretor-geral da Saúde, precisamente na mesa onde estamos. No final de 1975, os hospitais não eram as unidades modernas de hoje e era preciso dar mais visibilidade à intervenção preventiva, às dimensões da prevenção da doença e da proteção e da promoção da saúde. E a relação de filho de diretor não me atraía. Era uma relação diferente da que tinham os outros médicos.

Sentia-se mais protegido.
Sentia-me diferente. O filho do diretor ou é protegido ou está sob maior exigência. Tenho uma irmã médica que também saiu de medicina interna por perceber este fenómeno.

Mas reconhecia muita competência ao seu pai. Ia para a mesa com bloco e caneta para tirar dúvidas...
Sempre. Ainda hoje considero-me internista, com raciocínio ágil em termos de diagnóstico. Estudava com um colega, Eduardo Barroso, que todos hoje conhecem, oito a dez horas por dia porque o estudo das disciplinas básicas do primeiro ano era muito intenso. Um lia e o outro ouvia e depois trocávamos de papéis e na hora do jantar levávamos notas sobre o que não tínhamos percebido.

E quando se formou afastou-se novamente, para o Alentejo e depois para África. O que o atraiu?
O primeiro posto foi como delegado de saúde numa pequena vila, Cuba. Estava muito junto à população e o diretor-geral da Saúde de então, Arnaldo Sampaio (pai de dois dos meus amigos mais antigos da juventude, Jorge e Daniel Sampaio), enviava-me os consultores estrangeiros que vinham ver os progressos depois do 25 de Abril que iam a caminho do Algarve. Ao fim de quatro anos, em 1978, convidaram-me para ir a Genebra apresentar o nosso projeto inovador sobre a relação do médico com o cidadão, a família e a comunidade, e fui, já como consultor da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Qual foi a primeira missão?
Pediram-me para fazer um relatório na China sobre os ‘médicos pé descalço’.

Os médicos dos pobres?
Não, na China eram todos iguais. A missão era perceber o que eram os cuidados para com a família nas zonas mais rurais, as dos arrozais. O ‘médico pé descalço’ foi criado durante a Revolução Cultural e era um indivíduo com uma formação rudimentar, inferior à de um enfermeiro, que se deslocava de bicicleta — equipada com os principais meios para a prevenção, folhetos, instruções... — , que era tratado por “senhor doutor” e impunha um respeito muito grande. Andei nessas bicicletas... [sorriso]. Era dada muita atenção ao ciclo da mulher, porque os sindicatos só autorizavam um filho e quem não cumprisse era afastado da cooperativa rural. Nas fábricas têxteis, as operárias iam todos os meses às irrigações, uma espécie de bidé com repuxo, onde era verificado se havia menstruação e feitas manobras de aspiração para evitar uma segunda gravidez. Depois da China nunca mais larguei a OMS.

E em África interromperam o início de uma revolta porque ainda não tinha pago a bica.
Tal e qual [risos]. Foi a Revolução do Nino Vieira, o 14 de novembro de 1980, em Bissau. Estávamos na esplanada 24 de Setembro, ouvimos ruídos e uma brigada de revolucionários colocou um canhão mesmo no meio e mandou-nos pôr as mãos no ar. Entretanto, vem o chefe da esplanada: “Ouçam lá uma coisa, mas então como é? Quem paga os cafés?” E os revolucionários disseram: “Então, paguem os cafés e voltem a pôr as mãos no ar.”

Ainda em África, assistiu à descoberta do vírus da sida. Teve medo?
Tive muito medo. Nas escolas médicas em todo o mundo e em saúde pública o pensamento era controlar, eliminar, erradicar... Tinha havido uma grande vitória com a varíola, o último caso tinha sido em 1977, na Etiópia, e nunca ninguém pensou que pudesse emergir um problema que nunca tivesse existido. Com a sida percebeu-se que problemas de expressão pandémica podiam surgir sem que até então tivessem sido identificados. ‘Sapinhos’ das crianças, diarreia crónica que matava, herpes generalizado pelo corpo... víamos esses quadros sem saber qual era a sua natureza, foram três anos às cegas. Achou-se que podia ser transmitida por mosquitos e no dia em que se concluiu que não, fizemos uma festa, por acaso no mesmo hotel da revolução do Nino.

Apesar de todas as aventuras, pediu para regressar a Portugal.
Teve de ser, porque a licença, no conjunto de 12 anos, tinha terminado e iria perder o vínculo à função pública. Sabia que tinha que fazer por cá e regressei ao Alentejo.

Além de Arnaldo Sampaio, teve como mestre Avelino Cunhal, professor de História no Colégio Valsassina. Porque é que o marcou? Por ser pai de um opositor de Salazar?
Marcou-me porque naquela altura, sobretudo aos 13 anos, poucos sabiam quem ele era, e menos ainda no meu estrato social.

Um estrado social privilegiado.
Privilegiado, mas de resistentes. O meu pai era marcadamente de esquerda e o irmão da minha mãe esteve muitos anos preso em Caxias, submetido a torturas, por delito de pensamento. Foi aos 13 anos que os meus pais me autorizaram a visitar o meu tio e explicaram-me a diferença entre estar preso em Caxias e noutras prisões. E depois chego ao liceu e tenho um professor... Avelino Cunhal.

Os alunos sabiam quem ele era?
Todos sabiam que era pai do maior adversário do Salazar, que estava preso em Peniche.

Avelino Cunhal tinha uma postura semelhante à do filho?
Só vim a conhecer a fisionomia do filho no dia em que chegou a Portugal porque ninguém sabia como ele era, não circulavam fotografias. Tenho amigos que estiveram e viajaram com ele sem saberem que era Álvaro Cunhal e só no dia 27 ou 28 de abril de 1974 é que perceberam. O pai, em termos físicos aparentava-se com o filho, era uma figura de elevadíssima dimensão intelectual: escritor, com contos premiados, o primeiro neorrealista no teatro, advogado e pintor. No plano pedagógico, tinha atenção à filosofia e à organização do pensamento.

Foi o seu pai que lhe disse que o filho do professor tinha fugido da cadeia.
Precisamente. E eu no dia seguinte fui muito feliz ter com o meu professor porque sabia da novidade. Ninguém sabia e foi inesquecível. Ele pôs a mão por cima do meu ombro e subimos a escada em silêncio e a partir daí mantivemos a cumplicidade. Fui sempre amigo dele e fui aos serviços fúnebres no Alto de São João. Decidiu ir para uma vala comum, era uma pessoa de grande humildade.

Houve um episódio fantástico, da coroa de flores trazida num camião...
Sim. Era uma coroa gigante de flores vermelhas, que teve de ser retirada com um guindaste, e que dizia “do teu filho Álvaro”. Foi em 1966, quando entrei na faculdade, e estava um dia de muita chuva e pouca gente, talvez 30 pessoas, não mais. Fomos todos identificados e fotografados e a morte não foi noticiada. Saiu apenas uma nota no “República”, julgo que uns dias depois, a dizer que tinha ido a enterrar o antigo governador civil da Guarda...

40 anos depois esteve no mesmo sítio no funeral do filho, Álvaro Cunhal.
Estive, por um sentimento de dever em relação à figura do pai e às minhas conversas com ele durante a clandestinidade do filho.

Diz que a liderança do PS por Jorge Sampaio fez mudar o seu sentido político. De onde para onde?
Mudei. Não é frequente termos um amigo de infância eleito secretário-geral de um grande partido e depois Presidente da República, pesa muito. E por sinal, já me aconteceu duas vezes... um pequeno pormenor [sorriso]. Estava fora mas telefonei-lhe para dizer que estava às ordens para o que entendesse. Depois fui ao Largo do Rato e quem me atendeu foi António Correia de Campos, que liderava as questões ligadas às campanhas de Jorge Sampaio.

Foi lá inscrever-se como militante?
Fui lá, sobretudo, para dizer que estava ali para o que fosse preciso.

Estava à esquerda e aproximou-se dos socialistas?
Sim, mas na perspetiva de acreditar na liderança política e na capacidade de Jorge Sampaio fazer a diferença. E fez.

Mas era militante de outro partido?
Não falo em militâncias partidárias antes do 25 de Abril por razões que têm que ver com compromissos.

Compromissos com quem?
Compromissos. Entendo que o diretor-geral da Saúde é uma figura, como um embaixador ou um general, que tem de ser absolutamente imparcial.

Mas, ideologicamente...
Considero-me, desde sempre, com uma posição à esquerda.

Foi colega de escola de Marcelo Rebelo de Sousa, o segundo amigo Presidente a que se referiu, e afirma que é o líder de que o país estava a precisar. Cavaco Silva foi assim tão mau?
Cavaco Silva foi um Presidente e um primeiro-ministro distante e frio. Muito frio e muito distante. Ao fim de mais de 20 anos nos cargos não conseguiu colocar Portugal no rumo certo. Seria melhor e mais aconselhável resguardar-se em silêncio. A meu ver, agora, a sua palavra no debate político não faz muito sentido, não é oportuna e ele não pode ignorar a sua baixa popularidade.

Isso apesar de Marcelo ser do PSD, distante dos seus ideais...
Sim, mas identifico-me com ele. Claro que nem todas as políticas do PSD são de direita. Aliás, a pureza da social-democracia nunca foi considerada de direita. A defesa do Estado social, como a saúde e a escola pública, tal como a procura da justiça social, devem fazer parte das nossas ideias, valores e princípios. Então, quer dizer-me que Pacheco Pereira não é um dos nossos mais brilhantes pensadores? É de esquerda ou de direita? O brilho dele não seria modificado por rótulos nem por emblemas. Uma vez disse-lhe que ele devia receber uma bolsa do Estado para pensar e escrever [risos]. E o PSD tem homens de esquerda.

Tem?
Duvida disso? O social-democrata íntegro é um homem com pensamento à esquerda.

Pedro Passo Coelho é um homem com pensamento à esquerda?
Não. Mas há sociais-democratas e líderes de democratas... Marcelo Rebelo de Sousa é seguramente um social-democrata, uma pessoa muito apreciada e estou certo que se hoje fosse às urnas, depois destes dois anos de mandato, teria muitos mais votos.

Com amigos e ideais políticos fortes porque é que nunca entrou na política?
Não era compatível com ser médico com uma carreira na Direção-Geral da Saúde. A partir do dia 20 de outubro irei pensar nisso.

Já decidiu ir para a Cruz Vermelha.
Eu não vou. Decidi ser candidato e terá de ser a Cruz Vermelha a dizer se aceita a minha candidatura ou não, e isso faz toda a diferença. Nos termos estatutários, é o Conselho Supremo da Cruz Vermelha que em sessão eleitoral vai escolher, por consenso, o candidato. Considero que aos 70 anos tenho energia suficiente para gerir um grande projeto como é a Cruz Vermelha Portuguesa. Sempre reconheci a necessidade de o candidato assumir um perfil de total independência, imparcialidade e neutralidade, valores essenciais da atuação dos membros e que partilho.

Como diretor-geral da Saúde quantas decisões teve de tomar em que a ciência foi contrariada pela política?
Nenhuma, antes pelo contrário. Todas as decisões foram sempre peneiradas por opiniões colegiais. Por exemplo, a aquisição da quimioprofilaxia para a gripe foi aprovada em reunião que juntou 50 especialistas e a regulamentação da interrupção voluntária da gravidez foi previamente discutida pelos professores catedráticos de obstetrícia de todas as universidades portuguesas. A seguir há o filtro político e depois, se for caso disso, a intervenção parlamentar. Mas a minha responsabilidade fica limitada à primeira etapa, à fase meramente técnica [sorrisos].

Nem durante a pandemia de gripe A com a compra do oseltamivir, apontado como pouco eficaz?
A decisão foi tomada pelo Governo no seguimento de uma reunião com 50 especialistas nacionais e no seguimento de um conselho europeu onde todos os países foram aconselhados a comprar. No plano científico, todos conhecíamos o oseltamivir como tendo utilidade clínica em determinados critérios, como tomar logo no início dos sintomas. Tínhamos de adquirir porque se não as notícias, essas sim alarmantes, teriam dito que Portugal era o único país que não comprou o medicamento. Foi uma medida de segurança para prevenir uma situação que se pensava que podia ser mais grave do que veio a ser.
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A prevenção enfraqueceu a pandemia de gripe?
Pelas medidas que foram tomadas, porque quando surgiu, na região da Cidade do México, a situação foi dramática. As Forças Armadas estiveram ali para conter a propagação.

Recentemente tivemos o reaparecimento do sarampo e disse que os pais que não vacinam os filhos são negligentes.
Sim, não vacinar os filhos é como infligir maus-tratos, porque os pais têm o dever de proteger os filhos.

É isso que acham que estão a fazer.
Não, e não é uma questão de opinião.

Muitos pais que não vacinam os filhos são instruídos, alguns são médicos...
São mal informados, alguns fazem parte de seitas e pensam que têm o direito de expor os filhos a riscos, mas não têm. Os pais têm o dever de cuidar dos filhos.

Pais que imponham uma alimentação vegetariana ou que retirem o leite não cumprem o seu papel?
Tenho pena. São atitudes condenáveis os pais imporem uma alimentação vegetariana ou retirem o leite, visto que têm o dever de estar bem informados e de cuidar dos filhos, independentemente das suas opiniões. Por exemplo, no caso de não aceitarem a vacinação devem assinar um documento onde assumem que, apesar de informados, insistem em não autorizar. A criança terá de estar sinalizada na escola para ser alvo de tratamento específico. [Irritado, levanta a voz e bate com mão repetidamente na mesa.] Uma criança não vacinada não fica protegida e se está à guarda de uma escola, a instituição tem de saber que há um aluno vulnerável, fragilizado em relação aos colegas.

O Estado que obriga a usar capacete ou cinto de segurança deve obrigar a vacinar as crianças que estejam em escolas públicas?
A questão é válida em termos de legitimidade, mas prefiro que a vacinação seja tida como um dever social e não uma obrigatoriedade.

Mas, qual é a sua opinião?
As crianças têm de ser vacinadas e é um dever vaciná-las. Nesta questão não consigo usar a palavra obrigatório. É um dever! Mas há mais questões no controlo das doenças transmissíveis. Vamos equacionar o seguinte: um doente com ébola está internado no Hospital Curry Cabral, cansa-se de estar hospitalizado e quer ir embora em pleno período infeccioso. Pode fazê-lo e isto é muito grave. A lei permite-o, mas não faz sentido sobrepor garantias individuais aos interesses coletivos. Então um tuberculoso que anda a propagar bacilos multirresistentes no metro ou no autocarro não devia ser tratado? Há, sem dúvida, excesso de ‘garantismo’ na nossa Constituição. Percebe-se depois de um longo período de ditadura mas já não faz sentido.

É antitabagista mas fumou.
Fumei como todos os adolescentes. O pai do ministro da Ciência era o diretor do Colégio Valsassina, onde estudei, e uma vez, tinha eu 14 anos, viu-me com um maço e tirou-me os cigarros. Fiquei revoltado, disse-lhe que os tinha comprado com a semanada e que não tinha o direito de ficar com eles, mas hoje vejo que fez bem. E fumei durante os estudos na faculdade, sempre moderadamente.

Influência do colega Eduardo Barroso, fumador de charutos?
Não. Ele só afinou esse comportamento mais tarde, até porque não tínhamos dinheiro para charutos. Deixei de fumar em 1975, porque me tornei médico e não fazia sentido fumar e trabalhar num hospital.

Defende que um responsável de Saúde não deve ser fumador?
Não pode fumar.

E pergunta aos seus colaboradores se vacinaram os filhos, por exemplo?
Não faço isso.

Vai sair da DGS sem ter conseguido colocar semáforos nos alimentos para indicar os melhores e os piores...
É a economia. Ultimamente dizem-me que Portugal exporta muito e que com essas indicações não poderiam exportar os seus produtos de sinal vermelho [risos].

Uma medida de grande benefício para a saúde pública, como foi a redução do açúcar, não avançou para proteger a economia?
Sim. Sou contra muitos dos interesses defendidos pela economia imediata. Não sei se está a captar o que estou a dizer... Para ser claro, em algumas medidas propostas em nome dos interesses da saúde pública os deputados terão sido demasiado tímidos. Não audazes. Na questão do tabaco, por exemplo, a Assembleia da República podia ter ido mais ao encontro dos movimentos europeus antitabágicos. Aprovaram demasiadas exceções à restrição de fumar em espaços públicos fechados.

Então, o que é que falta fazer?
Os deputados foram tímidos, tímidos. Era preciso ir mais à frente, por exemplo, ter embalagens brancas, normalizadas e com imagens, letras e locais onde a marca aparece tipificados e sem os logos distintivos para perderem o design, muito atrativo para os jovens. Esta medida foi iniciada em 2011 na Austrália e teve grande impacto, mas a Philip Morris colocou o Governo australiano em tribunal e ganhou a ação. Ainda assim, a embalagem uniforme já existe em vários países europeus: Reino Unido, França, Irlanda, e a Finlândia está a trabalhar nisso.

Fez parte da Conselho Nacional para a Procriação Medicamente Assistida. Concorda com as barrigas de aluguer?
É verdade. Integrei o conselho logo depois da sua criação. Tenho opiniões pessoais, aliás liberais, mas normalmente não as discuto em público porque o meu pensamento pode não coincidir com o que pensa o diretor-geral da Saúde, que só toma parte em discussões que tenham reflexo em saúde pública depois de tirada a bissetriz de amplo debate entre especialistas. O mesmo já não acontece com a interrupção voluntária da gravidez, onde tomei claramente a defesa pelo interesse da descriminalização. Nos últimos dez anos veio a demonstrar-se que foi um sucesso em Portugal, traduzido em vários indicadores, como por exemplo o número de interrupções por cada mil nados vivos estar abaixo da média da Europa. Já a procriação medicamente assistida (PMA) coloca questões diferentes, sobretudo no plano da ética.

A que questões éticas se refere?
Alguns elementos eram diretores de centros de PMA, quando uma das funções do conselho é avaliar esses mesmos centros... Depois da regulamentação da lei, apresentei a proposta de dissolução do conselho, que não foi aceite e, por isso, pedi ao ministro a minha substituição. Por outro lado, a condução dos trabalhos não me satisfazia.

Mas qual é a sua opinião sobre a PMA?
Concordo em determinadas circunstâncias. Não concordei com as expressões, a meu ver exageradas, de Gentil Martins mas é preciso ver que não estamos a falar de um problema de saúde pública mas de uma questão que diz respeito a um número muito pequeno de pessoas.

A PMA deve ser para casos com justificação clínica.
Sim, quando clinicamente se justificar.

E sobre as diferenças de género, devemos falar em pessoas e não em homens e mulheres?
Nesta fase estamos bem. Não necessitamos de alterar os nossos códigos, até porque estamos a falar de minorias com pouca expressão que não alteram percentagens quando analisamos indicadores com base no género. No conjunto da população, os ‘trans’ não representam qualquer significado estatístico. Claro que no seio da família ou de uma determinada comunidade pode ter alguma expressão. Mas, sublinho, sem induzir a leitura referente às diferenças de género.

Continuando com questões fraturantes na sociedade portuguesa, tem testamento vital?
O testamento vital é uma criação da Assembleia da República, aliás, como aconteceu com o conselho para a PMA, mas tem fragilidades. Como pode ser alterado a qualquer momento, não faz sentido andar com um papel no bolso a dizer que não se aceitam transfusões de sangue ou ser reanimado. No plano pessoal, considero que o testamento vital não é uma necessidade sentida pelos cidadãos.

Mas pode vir a estar numa situação em que não consegue transmitir a sua vontade.
É uma questão importante a decisão do próprio sobre os tratamentos no final de vida. Morrer em casa ou no hospital, ter tubos invasivos...

Já pensou sobre isso?
Tenho pensado muito, por uma questão de direitos. Sou daqueles que entendem que deve ser respeitado o desejo sobre o fim de vida.

Deve existir o direito à eutanásia?
Tem havido um debate nem sempre feliz sobre esta questão. Aceito como princípio a decisão de pôr fim à vida numa situação de idade muito avançada, de grande incapacidade e irreversibilidade da situação clínica, como múltiplos AVC ou dependência total.

E se for um jovem tetraplégico?
Não. A única situação totalmente irreversível é a idade. Tive debates com colegas meus e não alterei em nada a minha opinião.

O que é uma idade avançada para si?
Acima dos 85 anos. Mas numa situação de doença muito grave e irreversível não será necessária uma idade tão avançada.

E concorda com a eutanásia ou com o suicídio assistido?
É-me indiferente. Não me preocupa.

A vida foi madrasta, ao mesmo tempo levou-lhe a mulher e uma filha.
Foi o que foi, toda a gente sabe, aconteceu. Em março de 2006, no dia 21, a minha filha fazia 31 anos naquele dia. Tinha dito aqui na DGS para não se atrasarem e irem ter ao restaurante. Fui para lá, onde já estava a minha mãe, e fiquei à espera. Telefonei uma vez e não atenderam e quando telefonei pela segunda vez atendeu-me a GNR.

Conseguiu manter-se lúcido?
Consegui porque não me disseram o que tinha acontecido, apenas que tinha havido um acidente e que estavam no hospital. E fico por aqui... [olhos com lágrimas].

Como é que se avança a partir daí?
É tudo muito complexo mas a equação é simples: as pessoas ou sentem-se derrotadas e desistem ou vão em frente, mobilizando energias onde elas existem. É um processo muito difícil mas o luto tem aspetos naturais que protegem, que ajudam: os sonhos. É ótimo quando se começa a sonhar, é como matar saudades.

Quem lhe deu a notícia de que o acidente tinha sido fatal. Lembra-se?
Lembro. Foi um grande amigo meu. Quando as ambulâncias chegaram ao hospital as pessoas souberam o que tinha acontecido. Eu telefonei a um médico amigo de Beja para ir ver e soube logo.

Tomou alguma medicação?
Não, nada.

Desabafou muito com amigos?
Isso sim. Ainda há pouco tempo estive com dois amigos que me falaram dos convívios anteriores.

Isso não o magoa?
Não, é muito bom. Almocei recentemente com um grande amigo, que todos os portugueses conhecem, e ele também perguntou se me incomodava falar sobre isto e respondi o mesmo: que não me incomoda nada, pelo contrário, é bom.

O ser humano não está desenhado para assistir à morte de um filho.
É muito complexo e difícil.

É crente?
Não.

Sendo médico é mais fácil apelar à racionalidade?
A natureza e o funcionamento do corpo humano, incluindo a mente, o subconsciente, têm mecanismos de defesa com grande utilidade. Ao fim de poucas semanas, as memórias — como a viagem de comboio em que conheci a minha mulher — surgem e dão-nos muita satisfação. Recordar é bom, aliás, os psiquiatras sabem bem que muitas terapias são feitas ao reviver os acidentes de uma forma acompanhada e tranquila.

Ainda sonha muito ou vai passando?
Ainda sonho e gosto.

Vai ao cemitério?
Vou, embora a tradição do cemitério inglês, onde está a família, seja muito diferente. A configuração do próprio cemitério é diferente, é um jardim.

Escreveu na lápide “a love like ours never dies”. Mas morreu uma parte de si.
Claro, uma parte importantíssima.

Atende jornalistas em três telefones ao mesmo tempo e ainda fala com os seus colaboradores. Nessa fase fez-se um pacto para que nenhum o contactasse por trabalho.
Senti isso e outra coisa muito importante que não sabia que existia: a importância dos amigos e da família que aparecem nas últimas homenagens. Ver as pessoas tem um significado que eu ignorava. Tem um significado emocional de uma dimensão inexplicável e que em termos de conforto é insubstituível. Não é só para mostrar que se está lá, percebe-se que há solidariedade. Compreender o sentido da palavra solidariedade é qualquer coisa de muito importante, como nas cartas ou nos telefonemas que recebi.

Pensou em deixar a DGS?
Pensei, porque não sabia se ia ter capacidade de continuar. Mas uma semana depois, estava aqui a lutar pelos programas principais. A carta que mais me emocionou foi a de uma colega que contava um episódio que tivemos. Eu discordei dela sobre um assunto técnico da sua área e ela sentiu que não seria legítimo da minha parte, visto ser ela a especialista. Depois veio a reconhecer que eu tinha razão e que isso era a prova de que eu fazia falta na DGS e tinha de continuar.

Mas é, de facto, um pouco mandão.
[Risos] Sabe, alguém tem de dar instruções.

E trabalha com muitas mulheres.
É verdade. A quota aqui é elevadíssima a favor do género feminino.

Também é mandão com os netos? Chateia-os com a comida?
Não chateio mas não deixo beber refrigerantes, são sete pacotes de açúcar em cada um, e sou tolerante com os gelados. Tenho uma relação de grande intimidade com eles.

Como é a relação com os seus filhos?
Os meus filhos conhecem-me bem [risos] e fazem o que querem. Todas as semanas janto com eles e concentro a minha educação na redução do sal e do açúcar.

A perda que teve mudou a sua atitude em relação aos outros dois filhos e aos netos?
Mudou no sentido da necessidade de aproveitar todos os dias, todos os momentos.


Vai sair da DGS sem ‘espinhas na garganta’?
Vou sair com a sensação de dever cumprido. E não levo nada, tudo o que aqui está é do Estado. Só levo o meu computador debaixo do braço.


Nem leva retratos?
Isso já arrumei. Vou fazer assim: no dia 19 de outubro, às 19 horas, vou colocar a minha fotografia na galeria dos diretores aqui na DGS e no dia 20 farei uma intervenção sobre 44 anos de serviço público na reitoria da Universidade Nova, em Campolide.


No dia 21 de outubro faz 70 anos. Vai celebrar com festa?
Sim, mas uma coisa familiar.


Porque é que a subdiretora-geral, Graça Freitas, não lhe sucede na DGS como seria expectável?
Não me sucede porque são precisas candidaturas e ela não teve vontade de se candidatar. Além disso, outras pessoas já o fizeram.


Qual é a qualidade necessária a um bom diretor-geral da Saúde?
[Silêncio] Gostar do que se faz e colocar o interesse público à frente de todos os outros, incluindo do interesse familiar.


Não teve excesso de entusiasmo ao fazer comunicados recomendando aos portugueses que se agasalhassem quando estava frio ou que bebessem água quando estava calor?
Não. As equipas dizem que é preciso insistir nessas questões.


Quem foram os ministros de Saúde com quem menos gostou de trabalhar?
Todos os seus colegas fazem essa pergunta.

Por isso deixei-a para o fim.
Não fiz nenhuma grelha, mas posso dizer que muitos eram meus amigos há vários anos. Maria de Belém, António Correia de Campos, Ana Jorge, Adalberto Campos Fernandes...Só posso responder que os ministros com quem trabalhei ou eram meus amigos pessoais ou tornaram-se meus amigos. Por exemplo, Paulo Macedo certa vez convidou-me para ir ao seu gabinete celebrar os bons resultados com champanhe francês.

É mais fácil quando o ministro é médico?
Nunca pensei nisso.

Acabam todos apenas a gerir dinheiro.
Sim. Acabam todos a fazê-lo porque o problema é o orçamento.


* Um grande senhor com muita sabedoria para ensinar.

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Grande entrevista: Vera Lúcia Arreigoso
Fotos: Nuno Botelho


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