Brandos costumes,
ignorância, morte violenta
A diferença é de
percepção: há 50 anos considerava-se que o Estado era dos ricos,
opressor e obscurantista, enquanto agora é supostamente dos cidadãos,
democrático, libertador e iluminado. Não mudou nada? Mudou o sistema
político.
Quando das inundações em Lisboa em 1967, participei, com centenas
de outros estudantes universitários, na limpeza de casas de pobres,
cheias de lama, enquanto as senhoras do Movimento Nacional Feminino, uma
organização do regime, passeavam de stilettos e vison a “consolar” os
desgraçados e lançando louvores aos jovens voluntários (levaram umas
pazadas de lama de alguns estudantes). O Estado demitira-se de ajudar as
vítimas, o que naquela época não espantava ninguém. Um grande movimento
de solidariedade de estudantes da capital, penso que sem paralelo até
hoje, fora organizado pelas associações de estudantes para ajudar as
vítimas das cheias.
O que agora aconteceu no centro de Portugal é semelhante. Helena Matos escreveu no Observador:
“O que aconteceu em Pedrógão (…) apenas tem paralelo com as cheias de
1967: o Estado não estava lá. As pessoas gritaram, as pessoas pediram
socorro, as pessoas fizeram o que as autoridades mandaram… e morreram”.
João Miguel Tavares escreveu no Público:
“O sentimento de ausência do Estado é assustadoramente parecido nos
dois casos, apesar de haver meio século a separá-los. São as mesmas
falhas no ordenamento do território (há 50 anos, na construção
desordenada de casas em cima do leito de rios e ribeiras; agora, na
plantação desordenada de pinheiros e eucaliptos em cima de casas e de
estradas); as mesmas falhas das autoridades em responder aos pedidos de
ajuda; a mesma tentação em menorizar a dimensão da tragédia (há 50 anos,
a censura riscava os títulos que garantiam existir “centenas de mortos”
– havia mesmo –, substituindo-os por “dezenas de mortos”, e atiravam-se
as culpas para cima da mãe natureza; agora, menoriza-se a
descoordenação das autoridades, e atiram-se as culpas para cima da mãe
natureza)”.
A diferença é de percepção: há 50 anos considerava-se que o
Estado era dos ricos, opressor e obscurantista, enquanto agora é
supostamente dos cidadãos, democrático, libertador e iluminado. Não
mudou nada? Mudou o sistema político. Há liberdade de expressão,
política, e de alguns costumes. Mas o Estado e a superestrutura, como
esta tragédia comprovou, continuam iguais, cuidando de si mesmos e das
suas clientelas, dominados por interesses particulares e quantas vezes
obscuros, enraizado em rebuscadas práticas que lhe são próprias,
sustentados na ancestral e submissa cultura, valores e sobrenaturalistas
crenças dos portugueses, que são os mesmos. A fraca educação e a baixa
cultura permanecem nos mais baixos níveis na Europa. A endémica falta de
exigência pelo cumprimento de promessas, obrigações, responsabilidades,
contratos, horários, respeito pelas pessoas, pela propriedade privada, e
pela natureza permanece e é fatal.
O geógrafo grego Estrabão (63-24 aC) referia-se às gentes que
habitavam a parte Ocidental da península como pré-históricos, que ainda
usavam umas toscas canoas. Seiscentos anos depois de Estrabão, São
Frutuoso de Braga escreveu a São Braulius de Saragossa uma carta
queixando-se do atraso cultural do oeste da península. Na resposta,
Braulius procurou confortá-lo: “Não penseis que sois digno de troça
porque estais relegado para a extremidade do ocidente. Num país
ignorante, como vós dizeis, onde nada mais se ouve que o som das
tempestades, porque este é um caso em que se pode dizer que aqueles que
caíram na escuridão irão ver a luz. Além disso, a província na qual vós
estais não é assim tão bárbara como vós dizeis. Foi povoada pelos gregos
e (…) [seguem-se nomes de alguns religiosos proto-portugueses que se
notabilizaram]”.
No livro Traços Fundamentais da Cultura Portuguesa (Planeta
2017), Miguel Real considera que há em Portugal um desenvolvimento
histórico e uma evolução cultural singulares assentes em cinco
constantes. Destaco duas. A primeira constante é uma profundíssima
desigualdade social, que, estrutural se mantém desde a segunda metade do
século XVI. A este propósito leia-se Reflexão sobre a Vaidade dos
Homens, 1750, de Matias Aires ou, sobre a inveja, A Arte de Ser
Português, de Teixieira de Pascoaes, de 1915. A segunda é o profundo
desprezo das elites políticas, económicas e religiosas relativamente às
populações, desprovidas de educação e cultura, como A Cidade e as
Serras, de Eça de Queirós, evidencia.
Mil e quatrocentos anos depois do lamento de São Frutuoso, a
ignorância permanece, com consequências históricas e mortíferas. Há
alguns anos, um documentário da RTP acompanhou a visita de antigos
soldados portugueses à Guiné. No exato local onde tinha decorrido uma
ação militar em que haviam participado, e onde portugueses tinham sido
mortos, um antigo sargento disse que, não fora o enorme atraso cultural
dos soldados portugueses, a guerra não teria possível. É bem conhecida a
ingénua submissão, lealdade primária e disponibilidade para sofrer e
aguentar o pior dos soldados (ainda hoje, recorde-se o recente episódio
nos Comandos). Foram os militares com maior educação que puseram fim à
guerra.
Mario Draghi, o respeitado Presidente do Banco Central Europeu,
disse num encontro com estudantes de economia portugueses em Lisboa, que
a crescente desigualdade na Europa é altamente desestabilizadora e tem
de ser resolvida com educação, inovação e investimento em capital
humano, em particular empregos para os jovens. Para além da desigualdade
dentro dos países, também tem aumentado a desigualdade entre os países
da zona Euro, disse Draghi, entre os países mais ricos e mais pobres,
sendo um foco de tensão e fator seriamente desestabilizador. “Temos de
lutar contra as desigualdades”, disse Draghi, em resposta a um
estudante, e pediu aos governos para porem em prática reformas
fundamentais para promover o crescimento. As estatísticas do Eurostat
revelam que os mais elevados níveis de desigualdade dos rendimentos
ocorrem na periferia da zona Euro — Grécia, Espanha e Portugal. Draghi
disse que a melhor maneira de lutar contra a desigualdade é através da
criação de empregos que por sua vez resultam de maior investimento em
educação, competências e inovação.
O atraso cultural e educacional da “extremidade ocidental”, e o
seu nefasto impacto nas instituições do Estado e nas relações sociais
lato senso, permanece e continua a ser raiz da não-convergência de
Portugal. O abuso e desvirtuamento da democracia exacerba a
desigualdade. A atual situação propicia a corrupção e o tráfico de
influências a todos os níveis, corrompendo a sociedade de alto abaixo,
de lado a lado, e não é compatível com os princípios do Estado
democrático e social, com os valores da União Europeia. Conduz a
descontrolada displicência, ao cinismo, ao desprezo pelos cidadãos, a
incompetência e, numa sociedade cada vez mais complexa, a ainda mais
desorganização de que podem resultar, e muitas vezes resultam,
destruição de vidas e de património nacional, e oblitera a esperança de
muitos e o esforço de alguns na construção de um futuro melhor para a
maioria.
Os programas dos partidos estão cheios de bons propósitos sobre
as responsabilidades do Estado. Os Princípios do PS afirmam que “o
Estado de Bem-Estar (…) representa uma conquista histórica das forças
democráticas e um pilar indispensável da democracia e do
desenvolvimento. (…) As políticas para a promoção do trabalho, do
emprego e do bem-estar, a protecção social, a redução de desigualdades e
a justa repartição de rendimentos, constituem orientações essenciais
para o Estado democrático. (…) É a realização dos direitos que permite
caminhar para uma sociedade solidária, que não pactue com a exclusão.”
O Programa do PSD afirma que “o Estado deve pautar o seu
funcionamento, as suas estruturas e os seus propósitos, por uma cultura
de serviço à cidadania, de convite ao escrutínio e de respeito pelo
contribuinte. (…) A Administração Pública deve ser protegida dos grupos e
poderes que pretendem colonizá-la e fazer dela um lugar de reprodução
de clientelas, assim como deve ser exposta a uma gestão rigorosa,
eficiente e inovadora, com atenção às melhores práticas nacionais e
internacionais.”
A Declaração de Princípios do CDS (1974) diz: “Para que os pobres
deixem de ser pobres defendemos que o Estado intervenha decididamente
nos mecanismos de acesso à propriedade e de distribuição da riqueza,
procurando, ao mesmo tempo, que esta cresça com um novo dinamismo. (…)
Defendemos que a autoridade do Estado se exerça no sentido de evitar a
subordinação dos interesses gerais ou colectivos aos interesses
particulares ou individuais.”
O problema é que os partidos se confundem com o Estado. Os
excelentes propósitos não têm sequência em ação independente, corajosa e
duradoura. Está na hora do Presidente da República abandonar a sua
branda e condescendente afetividade e acionar a emoção conhecida por
“fúria dos justos” – a emoção de Jesus quando, em cerca do ano 25, com
um chicote afastou os mercadores e cambistas do Templo. Queremos que o
Presidente passe aos atos, que utilize o poder enorme da Palavra
presidencial – palavras fortes, justas, verdadeiras, protetoras. Como
disse Emmanuel Macron, Presidente de França: “Je vous protegerais”.
Creio que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa é hoje o único português
com capital de confiança, com a independência e autoridade que lhe advêm
do voto direto, capaz de promover a renovação radical de mentalidades e
de modus faciendi de que os portugueses precisam e devem impor ao
Estado democrático. Ainda tem oito anos para lançar e promover esse
desafio nacional. Outros países fizeram essa transformação com sucesso.
Portugal também pode conseguir.
* Professor universitário
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
04/07/17
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