06/05/2017

DIANA SOLLER

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A França e 
crise do pluralismo

O vazio criado pela ausência de pluralismo no interior das nações tem sido preenchido por projetos supranacionais e nacionalistas. E esta é uma das causas políticas dos problemas atuais da Europa.

É raro assistirmos a eleições que têm como tema central a identidade de um país. Mas é disso mesmo que consta a segunda volta das presidenciais francesas deste domingo: os candidatos, Emmanuel Macron e Marine Le Pen, têm programas políticos tão opostos, que os resultados podem mudar a face da França.

Estes momentos de mudança de identidade, diz-nos a ciência política, não acontecem todos os dias. As ideias coletivas e as instituições que norteiam os países são resilientes e adaptáveis a novas realidades, de onde só uma grande crise de valores e/ou uma grande ineficácia das instituições – regra geral ajudadas por um ou outro acontecimento externo que abale o Estado – levantam questões desta profundidade. São as chamadas conjunções críticas.

A primeira volta mostrou uma profunda desconfiança numa das mais importantes instituições democráticas, os partidos políticos, especialmente os tradicionais (o PS parece estar moribundo), uma crise moral (todos ficámos convencidos que Fillon talvez tivesse passado à segunda volta não fossem os escândalos dos empregos fictícios para a família) e uma crise de valores (mais de quarenta por cento dos franceses votaram em programas políticos que colocam Paris na trajetória radical e antieuropeia).

Além das questões conjunturais já referidas noutros textos (que se repetem um pouco por todo o Ocidente) a França tem vários fatores específicos mais profundos a que os candidatos tentam dar resposta. Hoje escrevo só sobre um: os valores da Revolução Francesa, que todos aprendemos de cor na escola secundária: liberdade, igualdade e fraternidade.

Os dois primeiros não carecem de grande explicação, embora tenham significados ligeiramente diferentes consoante a história de cada país. Mas a “fraternidade” sempre me intrigou, até encontrar um livro na Índia, onde li, pela primeira vez, um bom ensaio sobre o tema. O autor, Dipankar Gupta, explicava que a fraternidade é precisamente o conjunto de medidas políticas e sociais que permitem que todos os habitantes de um estado (independentemente da classe social, preferência religiosa, cor de pele, etc.) sejam “naturalmente” vistos como iguais por toda a comunidade e usufruam do mesmo conjunto de direitos. Diz o autor que este movimento não é natural e requer um esforço conjunto das forças políticas e da sociedade civil. Neste aspeto, e apesar da história triste pós-Revolução Francesa, Paris esteve na vanguarda.

Dito por outras palavras, a fraternidade é uma designação aproximada do pluralismo. Aliás, o pluralismo é um valor fundamental. É o que dita que os seres humanos se aceitem uns aos outros na diferença, e que vivam em harmonia, sob as mesmas leis, direitos e deveres. Mas também é um valor esquecido na política. Quando ouço falar de pluralismo, regra geral, refere-se à diversidade das ideias políticas numa sociedade democrática. Mas é mais que isso. É a tal fraternidade que desfaz a ideia de “outro”, de diferença social, de raça ou credo, e esta versão tem vindo a desaparecer, um pouco por toda a Europa. É certo que é uma ideia utópica; a diferença é uma presença na vida de todos, e uns lidam melhor com ela que outros. Mas foi um valor pelo qual as democracias se bateram, até que as crises migratórias dos anos 90 e dos refugiados do século XXI levaram a diferença a derrotar o pluralismo. Pelo menos, temporariamente. Independentemente do que acontecer em França, segundo várias fontes, cerca de 70 por cento dos franceses acham há imigrantes demais no seu país. E o fenómeno não é de hoje.

O vazio criado pela ausência do pluralismo no seu sentido mais abrangente tem sido preenchido por projetos supranacionais e nacionalistas. Não tem havido tentativas sérias de o implementar no interior das nações. E esta é uma das causas políticas dos problemas atuais da Europa. E mais uma vez, este valor identitário, que é um dos mais importantes legados da Revolução Francesa.

Os candidatos propõem soluções diferentes para este dilema. Macron quer uma França fraterna e pluralista, comprometida com a identidade europeia. Mas deixa algumas perguntas sem resposta: como integrar imigrantes e refugiados (sim, porque a crise dos refugiados permanece e nenhum líder europeu teve a coragem de Merkel no que respeita à sua integração), – e como procurar um processo de naturalização do “outro”?

Para Le Pen, o pluralismo é uma palavra banida do dicionário. Quer uma França com menos mesquitas, com menos imigrantes a drenarem o estado social e a criar insegurança. Saída da presidência da Frente Nacional, Marine Le Pen apresenta-se agora como uma espécie de Evita francesa, com uma linguagem mais moderada (foi agora acusada de plagiar Fillon), como futura presidente de todos os franceses (nativos, claro, ela não o diz, mas todos sabemos). De uma cajadada mata-se a fraternidade e a igualdade (a liberdade logo se verá).

Qualquer pessoa que acredite na democracia, como eu, não hesita em preferir que Macron ganhe as eleições de domingo. Mas quem analise a situação com realismo, sabe que, se for presidente, terá grandes desafios – fazer um equilíbrio entre o pluralismo e uma eventual reforma da imigração – com resistências igualmente fortes (Le Pen veio para ficar, a Assembleia Nacional vai tornar-lhe a vida difícil, e cada reforma relativa a este tema trará meia França à rua – afinal a sociedade está, efetivamente, dividida). Mas os momentos de conjunções críticas exigem coragem política. Ou o preço a pagar é o aumento do terreno fértil para que o populismo extremista continue a crescer. E que um dia ganhe. E já agora, esperemos que nada disto venha tarde e que o próximo domingo não traga surpresas perigosas e desagradáveis.

Investigadora do IPRI

IN "OBSERVADOR"
04/05/17


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