Sobre as ameaças jihadistas
Tenho vários amigos muçulmanos e são todos
pessoas bondosas por quem tenho muita consideração. Acredito que a
maioria dos que professam a religião muçulmana são pessoas pacíficas,
bem-intencionadas e interessadas no bem dos outros. E, não sendo
religioso, tenho pelo Islão, enquanto religião, o mesmo respeito que
tenho pelas demais religiões.
Dito
isto, não posso deixar de reconhecer que há um problema com o Islão e
que será de uma enorme irresponsabilidade não o reconhecer. Desde logo,
porque o Islão não é apenas uma religião, dedicada à salvação das almas e
a proporcionar uma compreensão da existência humana e da sua relação
com a transcendência. É um compacto totalitário - religioso, jurídico e
político - para dirigir todos os aspectos da existência, pessoal e
social.
Por outro lado, e depois de um
notável florescimento cultural, assente numa fervilhante e criativa
agitação intelectual, nos primeiros séculos da sua existência - e a que a
cultura "ocidental" muito deve -, o Islão, por volta do século XII,
fechou-se, e fechou os seus seguidores, numa literalidade interpretativa
da mensagem revelada, solidificada no contexto histórico original, cujo
cumprimento é sujeito a uma estrita vigilância e os desvios sujeitos a
uma violenta repressão. Sendo a própria apostasia punida com a morte, a
adesão acaba por equivaler a uma prisão ideológica e social. Com esse
fechamento, o mundo islâmico passou de farol civilizacional, liderante
na ciência e na cultura, para um atrofiador atraso cultural que emperra o
seu potencial económico e o seu desenvolvimento social e é um
permanente foco de instabilidade.
Por
outro lado ainda, e embora a organização do Corão não seja cronológica,
os eruditos da doutrina reconhecem a prevalência das revelações mais
recentes sobre as mais antigas versando um mesmo tema, pelo que, quando
em eventual contradição, aquelas prevalecem e abrogam (i.e.
desautorizam) as que as precedem. Desta forma, e embora o Livro Santo
muçulmano instigue simultaneamente tanto à tolerância como à violência
(jihad) para com os descrentes, as segundas instigações são mais
recentes, pelo que, em confronto com as primeiras, abrogam-nas,
prevalecendo a orientação para a jihad. De que só pode resultar a
conquista ou a submissão dos descrentes.
Os
movimentos jihadistas invocam, pois, um fundamento religioso para as
suas campanhas. E fundam a sua acção na autoridade conferida pelo
reconhecimento "teológico" da abrogação e dos seus efeitos. E é pela
legitimidade dessa invocação que adquirem uma espécie de ascendente que
torna difícil o seu combate ou contestação de dentro do Islão, congregam
significativos apoios financeiros, se expandem facilmente e se
transformam numa poderosa ameaça.
O
potencial de violência decorrente destas considerações é enorme, como se
vê em praticamente todos os países islâmicos, onde, entre outras
coisas, tem vindo a ser comprimido o espaço das outras religiões e onde,
em particular, as religiões cristãs têm sido activamente perseguidas.
É
verdade que as principais vítimas desses movimentos são as próprias
populações islâmicas, indefesas, que lhes são violentamente subjugadas.
Mas também é verdade que o seu alvo estratégico é a eliminação ou
subjugação do mundo descrente da sua religião. E que se vê muito pouca
oposição aberta por parte do chamado Islão moderado.
Já Samuel Huntington referia no seu O Choque de Civilizações...,
publicado há vinte anos, que "a esmagadora maioria dos conflitos [nas
descontinuidades civilizacionais]... têm tido lugar ao longo da
fronteira que corre através da Eurasia e de África e que separa
muçulmanos de não muçulmanos" e que o principal choque de civilizações,
"ao nível micro ou local, é entre o Islão e os outros".
Esse
potencial violento tem vindo a ser crescentemente trazido à Europa com
as migrações e o fechamento destas à inclusão e inserção nas comunidades
de acolhimento. Alavancando-se, ademais, numa demografia crescente em
contraste com a demografia diminuidora das populações nativas.
Ignorar
esta realidade e os seus fundamentos pode parecer politicamente muito
correcto. Mas é, no mínimo, incúria política. E é perigoso. Tanto mais
que, contrariamente à mitologia revolucionária, as grandes disrupções
sociais e políticas são protagonizadas por organizadas vanguardas
activistas e não por majoritários movimentos de massas.
É
claro que a resolução deste problema só pode ser feita por dentro do
Islão, especialmente por aqueles que não se revêem neste caminho, e que
tal requer uma efectiva separação entre a religião e a política e uma
maior abertura intelectual no seio do próprio Islão.
Não
será fácil e é possível que alguns caminhos trilhados no Ocidente,
sobretudo no campo dos costumes, possam ser vistos como uma ameaça
existencial, reforçando o poder da ortodoxia e dificultando a abertura a
que muitos poderiam estar dispostos no mundo islâmico. Mas também é
verdade que o primeiro passo para lidar com um problema e tentar
resolvê-lo é reconhecer a sua existência.
* Economista
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/04/17
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