04/04/2017

TERESA NICOLAU

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“O perigo dos 
desgostos de amor causarem 
acidentes rodoviários na Índia”

Numa viagem de cinco horas, o motorista que me levava esteve mais de metade do tempo a falar ao telemóvel. Baixinho e quase em resposta contínua. Falava com a sua mulher.

Íamos batendo. Travagem a fundo e sem cinto de segurança, numa estrada esburacada e perdida no fim do mundo. O motorista que me levava estava ao telemóvel. E continuava. De frente, o motociclista que tinha o dedo pregado na buzina e uns outros quantos que se aproximavam a grande velocidade para ver o que se passava. Tinha eu cara de turista e incapacidades de tradução. Apenas os gestos e os barulhos remetiam a uma discussão acesa. É que íamos mesmo batendo. O motorista, que me levava, baixou a cabeça percebendo do tempo longo que ainda nos levava o destino. E desviou-se tranquilamente. Para continuar a falar ao telemóvel, baixinho e em lamento.

Só passadas três horas é que finalmente o murmúrio terminou. Estávamos a entrar em Mumbai. Achando eu, quase a chegar ao aeroporto. O motorista, de quem não me recordo o nome, lá me perguntou se tinha dormido bem. Bem, não dormi. Antes olhei o pôr-do-sol e os camiões coloridos, cheios de fitas vermelhas e divindades douradas, que tinham mais peso que a inclinação das montanhas. E montanhas. Serenas e magníficas, sozinhas num país de tanta gente. Tanta e mais ainda, que o ar tem esse cheiro de pessoas e cães que se apressam a pedir festas a toda a gente. O motorista lá me pediu desculpas, muitas mesmo, mas não sabia se eu era de gostar de conversar ou só de me fazer transportar. As palavras atrapalhadas em língua inglesa faziam surpreendentemente a comunicação de um rapaz de 29 anos, fraco na escola que mas aprendeu depressa a falar com os turistas e que saiu da aldeia porque não havia trabalho, mesmo que o pai tivesse uns pés de milho todos os anos e um rio junto a casa. O motorista, de quem não sei o nome, é casado. A sua mulher não trabalha. Ainda, acrescenta. Diz ainda mais vaidoso que a sua mulher está a estudar na universidade em Pune. Vai para economista e vai para ser uma das melhores. Admirei-me. Numa sociedade como a indiana, em que se fala tanto da segregação das mulheres e em que a violação é crime público, não apenas para os violadores mas também para as violadas, é maravilhoso que um homem fale assim da sua mulher.

Gosta muito dela. Gosta tanto que não consegue viver sem ela. E por isso, íamos tendo um acidente, confessa. E dizia que se zangaram muito, antes mesmo de me ir buscar. Disse-lhe uma coisa muito feia, incapaz de reproduzir. E que tinha sido tão injusto que ela se deitou no chão e não se levantou mais. Preparava-se, dizia-lhe ela, para não comer nem beber enquanto ele estivesse fora, enquanto não lhe pedisse desculpa. E seriam para lá de umas boas 24 horas. E que mesmo assim, teria de verificar o arrependimento do marido, pois considerava sair de casa para sempre. Ficou desolado, triste. Sozinho e perdido. E por isso se esqueceu de pôr combustível no carro e por isso tivemos de desviar da autoestrada. E por isso já não via com clareza nem encontrava o caminho certo para a cidade e por isso tivemos de parar num cruzamento e perguntar para que lado seguir, que ali não havia rede de telemóvel e a internet não funcionou. Depois de falarem três horas seguidas, lá se levantou do chão a mulher e lá descansou o coração do motorista.

A entrada no caos de Mumbai foi assim suavizada por esta história de amor. Um homem que se perdeu no mapa, quando a mulher lhe disse que o seu caminho já não era mais com ele. E que entre os carros medonhos e as motas tontas, as correrias das mãos estendidas e os cheiros e os calores e as invasões e as buzinas, havia este desgosto de amor, capaz paralisar o mundo. Trágico poema, de coração imobilizado, olhos sangrados e respiração em tormento, pele perfeita e morta, dor que é só saudade e viva. Só lá faltava uma dança de véu e uma chuva de monção.

E ele, quase em lágrimas, me disse que estava quase quase tudo resolvido e que só esperava que ela estivesse mesmo em casa. O seu regresso, desejei silencioso e apressado. Como assim desejei o meu.


IN "RTP NOTÍCIAS"
24/03/17

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