19/04/2017

PEDRO TADEU

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Os mortos contados 
por Zita Seabra

Zita Seabra, que foi uma dirigente do Partido Comunista Português até 1988 e agora milita no PSD, acusou, num programa de rádio e TV onde tentou explicar a sua devoção à Nossa Senhora de Fátima, a ideologia comunista de ter provocado cem milhões de mortos no século XX.

Esta contabilidade é agora uma prática recorrente e tenta circunscrever o relato da Revolução de Outubro, que há cem anos começou a mudar o sentido da história da humanidade, apenas aos crimes que em nome do marxismo-leninismo foram cometidos neste planeta.

Como comunista tenho a dizer que acho muito bem que se denunciem todas as atrocidades praticadas em nome da luta por uma sociedade sem classes - sem uma denúncia veemente mas rigorosa, sem uma análise profunda de como todos esses horrores aconteceram, o avanço progressista da nossa civilização não vai acontecer tão cedo.

Infelizmente, a mistura incoerente, mas não arbitrária, de critérios leva a que, por exemplo, sobre o estalinismo, já tenha lido que ele vitimou 650 mil pessoas e, também, que foram mais de 60 milhões, o que daria um em cada três habitantes da União Soviética!... Impossível.

A verdade histórica, que nesta matéria não existe, ensombrada pela manipulação ideológica de vários sinais, terá, portanto, de esperar muito tempo.

O essencial, no entanto, é inegável: houve demasiados horrores praticados em nome do comunismo. A sua condenação é inevitável.

Acontece, porém, que essa paixão pelas estatísticas que denunciam o lado negro do comunismo não é contrabalançada por uma análise semelhante ao mundo saído da queda da União Soviética.

No mundo do capitalismo globalizado, do período de maior riqueza económica e financeira da vida da humanidade, não podemos certamente acusar o comunismo de ter provocado, de 1990, já sem Muro de Berlim, até 2015 a morte pela fome de 236 milhões (dados da ONU) de crianças com menos de 5 anos. Só aqui estão, portanto, mais mortes inocentes do que as provocadas por toda a história do comunismo visto pela interpretação dissidente de Zita Seabra. Se juntarmos adultos a esta contagem, o valor sobe imenso...

Dirá o leitor que é uma falácia atribuir as culpas à globalização pelas mortes por fome. Até sou capaz de estar de acordo com essa crítica mas, na verdade, quando vejo as contabilizações de milhões de vítimas da ideologia comunista estão lá sempre os mortos pela fome provocados pela gestão da economia: são, até, grande parte desse inventário, pelo que, se esse critério é válido para um lado, terá de sê-lo, também, para o outro...

E até já vi a quase totalidade dos mortos da II Guerra Mundial ocorrida em territórios do Leste Europeu serem apontados como vítimas diretas do comunismo. É o mesmo que, nos últimos 25 anos, contarmos os mortos civis causados em guerras com envolvimento de países ocidentais, seja de forma direta seja em apoio a fações em disputa em palcos como o Iraque, Afeganistão, Médio Oriente/Primavera Árabe/Síria ou África: facilmente contaremos assim uns cinco ou seis milhões de vítimas mortais inocentes e um valor muito maior de refugiados, muitos deles afogados anonimamente no Mediterrâneo.

Aplicando portanto critérios semelhantes, as vítimas habitualmente atribuídas ao comunismo podem ser ultrapassadas pelos que morreram por alegados crimes cometidos em nome das democracias liberais e capitalistas do pós-Guerra Fria... É isto sério?

Não acham melhor, então, passar a uma análise mais honesta, frontal sim, mas honesta, desta contabilidade macabra do comunismo e do capitalismo?


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
18/04/17


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