Fidel Castro e
as ditaduras fofinhas
Nos nossos jornais alegadamente credíveis, Fidel era impecável.
Nos sites do DN e do Expresso, quem os lesse pensaria que tinha morrido
um Gandhi. E o Público anunciava "A morte muito antes do sonho".
Que fartote de declarações de amor por ditaduras e por ditadores.
Mal morreu Fidel Castro, quase todos os jornais enlouqueceram. Afinal
morreu um avô fofinho que conduziu benevolentemente o seu povo à
prosperidade económica, ao bem-estar social, ao mais livre ambiente onde
as mais ousadas ideias e expressões artísticas floresciam, ao
escrupuloso respeito pelos direitos das mulheres (que, de resto,
promoveu politicamente como ninguém: é ver a quantidade de mulheres
políticas high-profile da Cuba das últimas décadas) e dos homossexuais
(os rumores de prisão para os gays são calúnias imperialistas, claro).
Certo?
Pelo que se viu em jornais alegadamente credíveis, Fidel era
impecável. Nos sites do DN e do Expresso, quem os lesse pensaria que
tinha morrido um Gandhi ou outro apologista da não-violência.
O carrasco
de Cuba foi descrito como ‘líder carismático’, uma ‘vida histórica’, ‘o
eterno revolucionário’, blablablabla. A ditadura cubana, a repressão
castrista, a violência sobre os opositores políticos, os que fugiam de
Cuba como se do inferno, e os milhares de vítimas, e famílias das
vítimas, de Fidel Castro – esses pareciam invenções de bebedores da água
suja do capitalismo: nem se notaram.
O Público teve durante horas
online uma manchete de um texto sobre a vida de Castro (bem expurgado de
informações com bolinha, bem entendido) com o título ‘A morte muito
antes do sonho’. E por baixo afiançava que era o ‘ultimo herói do
socialismo ou o último pirata das Caraíbas, agora tanto faz porque, como
todos os idealistas, morreu muito antes do sonho’. (Perdoem-me o
vernáculo: sonho?! Herói?! Apre!)
Bom, tecnicamente em alguns textos os jornais não mentiram. Se tenho
dúvidas quanto ao carisma (quando se é preso se se duvidar do carisma de
um governante, geralmente age-se como se esse estivesse impregnado do
mais carregado carisma), já não há dúvidas que Fidel Castro foi
‘histórico’. Da mesma maneira que, ficando pelos exemplos comunistas, o
bilhetinho que o marechal Lin Biao deixou numa das reuniões do Politburo
do Partido Comunista Chinês, certificando que a sua mulher era uma
‘virgem pura’ quando casaram, também foi histórico. Em boa verdade, por
se situar no contínuo do espaço e do tempo, aquela vez em que me cruzei
com Donatella Versace (e os seus numerosos e atraentes guarda-costas)
numa sala de espera do aeroporto de Heathrow também foi histórica.
E de facto Fidel Castro foi revolucionário. Assim como a tecnologia
que permitiu as bombas atómicas de Hiroshima e Nagasaki foi
revolucionária. Mais: como bem se leu nos jornais, a história julgará o
barbudo opressor – mas esqueceram-se de dizer que o vai condenar. Ou que
nada impede adiantarmos o serviço da sentença nem tomarmos nota de quem
elogiou tal criatura.
As aldrabices sobre Castro aí pelos jornais eram tantas que Henrique Monteiro
teve de escrever a tentar por juízo na cabeça de colegas de profissão
em processo de alucinação. E o Público lá fez por recuperar a dignidade
com um editorial de Diogo Queiroz de Andrade, onde punha os tracinhos
altos nos dd (de ditador), dando uma boa ideia da governação do esbirro
caribenho.
As reações dos políticos foram igualmente repugnantes. Do PCP veio o
gozo descarado costumeiro. Jorge Sampaio, essa insignificância política
de que não rezaria a história se um dia Cavaco não tivesse perdido umas
eleições, deu um testemunho (e porquê, Deus meu, alguém se lembra de
pedir um testemunho a Jorge Sampaio?) onde aplaudiu a simpatia do
hirsuto Castro, entre outras qualidades adoráveis. Do atual Presidente,
que há pouco tempo se fez fotografar sorridente ao lado do tirano,
também nada de tragável veio.
Mas o pior chegou na forma dos votos de pesar que o parlamento
aprovou pela morte da criatura. E se do PS extremista se espera todos os
enlevos com as ditaduras comunistas, já não se perdoa que o PSD tenha
escolhido abster-se nesta votação. É por estas e por outras que a
suposta direita parlamentar merece todas as geringonças que a atropelem:
os eleitores não respeitam quem não se dá ao respeito.
Enfim. Para terminar com uma nota de humor, depois das entranhas
revolvidas com as reações portuguesas à morte de um carrasco das
Caraíbas, podemos pelo menos reconhecer que ninguém por cá foi tão ridículo como Trudeau – deu azo a uma das hashtags mais divertidas
dos últimos tempos –, que produziu um tributo a Fidel Castro que até a
canadiana CBC chamou de ‘deliberadamente obtuso’. Parece que Fidel amava
de amor profundo o povo cubano (matou e prendeu uns tantos, mas o que
interessa isso?) e criou um maravilhoso mundo com boa saúde e educação.
O que é verdade. Quem não aprecia um destino de turismo sexual com
oferta de gente muito escolarizada a prostituir-se? Também me lembro do
filme Guantanamera, dos idos dos anos 90, onde uma professora
universitária e um seu antigo aluno referiam áreas do saber cubanas,
utilíssimas em qualquer curso superior, da estirpe de ‘marxismo
dialético’ ou ‘socialismo aplicado’. Quem não saliva pela oportunidade
de estudar isto?
Em todo o caso, os meus pêsames à família. Desejo que não se amofinem
uns com os outros à conta das partilhas. Afinal os filhos são muitos e
dividir os novecentos milhões de dólares que
a revista Forbes calculou como fortuna pessoal do comunista Castro não
deve ser fácil. Espero que nenhum venha a passar dificuldades nem tenha
de prescindir das férias no seu iate nas ilhas gregas.
IN "OBSERVADOR"
30/11/16
* Temos tido quase sempre a reserva sobre artigos de opinião, mas neste saudamos a autora que pôs os pontos no ii desta necrofilia pegajosa, um ditador quando morre não é bonzinho, é felizmente, um ditador morto.
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