A histeria das classificações
Existe hoje, como sinal do reducionismo e simplismo que vai crescendo na
vida política portuguesa, uma verdadeira histeria das classificações. A
morte de Fidel foi disso um bom exemplo, com metade do mundo a acusar
quem não dizia que ele era "ditador" de ser conivente com todas as
ditaduras, e a outra metade indignada com o modo como Fidel era
equiparado a Pinochet e mesmo a Salazar. Depois vinha outra habitual
palermice a que estamos cada vez mais habituados, a medida das ditaduras
pelo número de mortos que tinham causado, uma boa maneira de atirar
Fidel ao fundo, e de reabilitar a ditadura soft de Salazar. O número de
mortos conta certamente para não metermos tudo no mesmo saco, e aí
Hitler e Estaline são a primeira divisão, mas a contabilidade exige
outros critérios, que são históricos e políticos. Por exemplo, na
contabilidade de Salazar incluímos os mortos pela PIDE, ou em
manifestações, mas excluímos os mortos da guerra colonial. Deixemos essa
sinistra contabilidade que pouco nos diz sobre a natureza das
personalidades e dos regimes, a não ser que são, regra geral pouco
amigos da vida humana.
Voltemos a Fidel. Fidel foi várias
coisas; um combatente contra a ditadura de Batista e a corrupção da
máfia, do jogo e da prostituição que faziam de Cuba o entreposto daquilo
que o moralismo americano não queria no seu território; foi, num jogo
perigoso que ele jogou plenamente, "empurrado" pelos americanos para os
braços geopolíticos da URSS; passou de proponente de uma via diferente
de fazer a revolução, que competia com o comunismo soviético e o chinês,
para um dos mais ortodoxos apoiantes da URSS, sendo um dos primeiros,
com Cunhal, a apoiar a invasão da Checoslováquia; moldou, como aconteceu
também em África, o sistema de partido único a uma variante de
"comunismo cubano" que implicou desalojar os velhos comunistas para o
exílio nos países do Pacto de Varsóvia e substituí-los pela elite que
vinha da guerrilha; conheceu conspirações americanas e tentativas de
assassinato contínuas e também algumas conspirações soviéticas, e acabou
órfão do poder soviético quando este ruiu em 1989. O regime cubano
permaneceu num país pobre, com algumas e relevantes conquistas sociais,
mas encurralado no seu futuro a que apenas Obama mostrou uma
alternativa, que Trump vai querer fechar.
Os americanos ajudaram, com uma política incentivada pelos exilados
cubanos contra-revolucionários, a isolar Cuba e a consolidar o regime
castrista, os russos davam -lhe petróleo enquanto puderam mas exigiam
disciplina naquilo que eram os seus interesses mundiais. Fidel pelo meio
ia sobrevivendo assente numa repressão que conheceu diferentes fases,
mas que era sempre muito dura. Sim, Fidel foi um ditador, havia uma
polícia política, prisões e execuções, praticamente até à véspera da sua
retirada por doença, com o processo do general Arnaldo Ochoa como
estertor final. Os Papas e Obama, alguns dirigentes latino-americanos
que desafiaram o boicote americano e alguns países europeus que tinham
relações históricas com Cuba, como Espanha, funcionaram como moderadores
do regime com algum sucesso, mas Cuba não é uma democracia e os seus
dirigentes são um misto de nostalgia guerrilheirista e de aparelhismo
burocrático à soviética.
Porém, no exterior, as "imagens" de
Cuba e de Fidel traduziam as sucessivas contradições da sua história e a
fixação revolucionária em Fidel e Che, permitia a gerações de órfãos de
qualquer revolução aí procurar um modelo diferente. Na verdade, numa
procura de legitimidade romântica, que era simbólica, mas não histórica e
muitas vezes despolitizada. Que o digam os múltiplos dirigentes da
direita portuguesa que foram ao beija-mão de Fidel quando este esteve
recentemente em Portugal, ou mesmo o Presidente da República que foi a
Cuba para ter uma photo opportunity com Fidel. Surpreendentemente não
ouvi os que agora gritam por "ditador" criticar essa viagem e o
encontro.
Mas hoje só se percebe as multidões nas ruas de Cuba –
e nem tudo é encenado – se tivermos em conta que, com a evolução da
história, Fidel é visto cada vez mais como um nacionalista cubano e
menos como um dirigente comunista. Estas mutações ocorrem na história
várias vezes, e nem apagam o passado, nem deixam de ter significado no
presente. Para os cubanos que conheceram a colonização espanhola, a
"libertação" pelos americanos, depois a subjugação por uma aliança muito
comum na América Latina entre os interesses económicos americanos e os
ditadores locais, e que se sentem afrontados pelo longo embargo dos EUA,
que vivem perigosamente perto do maior poder mundial, o nacionalismo é
identitário. Como estamos numa Europa que acha que a identidade nacional
acabou – está muito enganada –, nem sempre percebemos estes fenómenos,
que a histeria das classificações coloca fora do lugar.
IN "SÁBADO"
16/12/16
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