A religião da dívida
No congresso do último fim-de-semana, o PCP insistiu na sua tese de que Portugal, de uma forma mais ou menos negociada, deve repudiar parte da dívida pública. O que dá razão à qualificação popular do comunismo como uma religião.
Tocqueville, que admirava na democracia americana a religiosidade dos
seus políticos, dizia que quem acredita que a recompensa da vida
terrena só nos espera na vida além da morte é alguém que tenderá a
pensar as políticas consoante os efeitos estruturais e de longo prazo,
não segundo as suas contrapartidas imediatas.
No PCP, que
também se define pela demanda de um futuro longínquo, passa-se algo
semelhante. Com uma diferença: como há séculos que o capitalismo insiste
em não ser derrubado pelas suas "contradições internas", a esperança
dos comunistas portugueses nos "amanhãs que cantam" já é mais uma
melancolia inconsequente do que um programa. É por isso que o PCP, ao
mesmo tempo que diz não haver futuro com esta dívida pública, apoia um
Governo do PS que jamais tomará uma iniciativa sobre o assunto. Não é
para esta vida que os nossos comunistas trabalham.
Diga-se
em abono da verdade que saber o que o PS pensa realmente sobre a
questão da dívida requer um esforço bíblico de exegese. Dos socialistas
têm vindo posições bastante diferentes, consoante a circunstância
política. Talvez o PCP veja nessa relação sinuosa e oportunista com o
tema uma abertura para os seus próprios aventureirismos.
Até
2011, o PS defendia que a dívida pública era por natureza virtuosa e
sustentável. Só por um atavismo salazarento se podia dizer o contrário.
Basta lembrar a campanha para as legislativas de 2009 e como José
Sócrates respondia aos alertas da oposição de direita sobre os riscos do
excesso de endividamento (em especial a forma reles com que destratava
Manuela Ferreira Leite).
Com a chegada da troika e do
Governo PSD-CDS, o PS, numa espécie de epifania, passou a achar
finalmente que a dívida pública portuguesa é um problema. Escreveram-se
manifestos, conspicuamente assinados por notáveis dirigentes e apoiantes
socialistas, e andou-se quatro anos a defender que o crescimento do
peso da dívida no PIB do país era um dos grandes falhanços da liderança
de Passos Coelho.
Foi uma estratégia mentirosa,
emblemática do que entretanto se começou a chamar de "política da
pós-verdade". O aumento da dívida não foi culpa da "austeridade", mas da
ameaça de bancarrota a que o PS conduziu Portugal - com o inevitável
resgate, os seus efeitos recessivos, o empréstimo de emergência e a
obrigação de inclusão das empresas públicas e das PPP no perímetro da
dívida. Para além disso, uma vez que a dívida é uma realidade dinâmica,
antes de começar a regredir o seu crescimento teria necessariamente de
abrandar. E foi ainda durante o anterior Governo que a dívida começou,
de facto, a regredir.
Seja como for, esta preocupação com o
assunto já era um avanço saudável relativamente ao keynesianismo
desregrado do passado. E um avanço do qual, aliás, corremos o perigo de
ainda vir a ter saudades, já que com o actual Governo o peso da dívida
no PIB voltou a crescer para níveis recorde.
Ou seja,
voltámos ao antigamente, ao PS pré-2011, que exerce o poder afundando o
país em dívida e que parece acreditar que esta é eternamente gerível,
que a disponibilidade dos credores é eterna e que o dinheiro cai do céu.
Vendo bem, também é uma forma de religião.
Advogado
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
06/12/16
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