HOJE NO
"JORNAL DE NEGÓCIOS"
Dos queijos da ilha aos lençóis, para
que serve o acordo com o Canadá?
A eliminação de direitos aduaneiros e de barreiras regulatórias são
os efeitos mais evidentes do Acordo Económico e Comercial Global (CETA)
assinado este domingo, 30 de Outubro, entre a União Europeia (UE) e o
Canadá. No entanto, além dos benefícios para as empresas, este
entendimento é encarado pelos especialistas ouvidos pelo Negócios como
uma forma de Bruxelas marcar terreno e equilibrar os pratos da balança
nas negociações em curso com os Estados Unidos.
.
A
directora de relações internacionais da BusinessEurope, a confederação
do patronato europeu, começa por destacar a liberalização do comércio e a
supressão quase a 100% dos direitos aduaneiros entre a UE e o Canadá.
Luísa Santos dá o exemplo dos produtos do têxtil-lar, como as roupas de
cama, em que os direitos ascendem a 17%, mas que abrangem outras
indústrias exportadoras, como o calçado (18%), o mobiliário (10%) ou a
cerâmica (8%), assim como produtos agrícolas transformados, como os
preparados de fruta ou os legumes. Valores que colocavam os produtos
portugueses também em desvantagem face a competidores de outros países,
como o México.
O acordo, que começou a ser negociado há sete anos, esteve bloqueado quase até ao limite pela região belga da Valónia,
que contestava, entre outros aspectos, o impacto do aumento da
importação de produtos de suíno e bovino. Luísa Santos relativiza,
porém, sublinhando que "a abertura do mercado canadiano a produtos em
que Portugal é competitivo, como queijos, azeites ou vinhos, vai
compensar a eventual concorrência acrescida noutras áreas agrícolas". E,
no campo da propriedade intelectual, sublinha o reconhecimento dado por
Ottawa a uma lista de 143 produtos abrangidos pelo sistema de
Indicações Geográficas (IG), que pode ser actualizada e que já inclui o
vinho do Porto ou o Queijo São Jorge, fabricado com leite de vaca cru
naquela ilha dos Açores.
Apesar de a comunidade
luso-canadiana ascender a 450 mil pessoas, os fluxos económicos entre os
dois países são "pouco expressivos", com o Canadá a representar apenas
0,7% das exportações nacionais em 2015. O sublinhado é da Câmara de
Comércio e Indústria Portuguesa (CCIP), para quem as vantagens deste
acordo vão além dos produtos agro-alimentares e industriais, chegando
igualmente a outros "sectores com elevado potencial", como energias
renováveis, biotecnologia, farmacêutico (genéricos), automóvel e
tecnologias de informação.
Em resposta ao Negócios, a entidade que conta com Paulo Portas na
vice-presidência frisou que "a cooperação regulamentar e de
simplificação de procedimentos alfandegários (…) levará à diminuição de
custos para as empresas" e focou noutro resultado "particularmente
importante" para as empresas portuguesas em matéria de investimento. É
que o acordo agora rubricado "assegura equidade relativamente a outros
Estados-Membros, uma vez que Portugal não tem qualquer acordo
de protecção de investimento com o Canadá".
A CCIP e a
BusinessEurope convergem no realce ao dossiê dos mercados públicos.
Luísa Santos descreve os "imensos problemas [das empresas comunitárias]
em poder concorrer nas compras públicas no Canadá", sobretudo devido à
autonomia governativa concedida às várias províncias. A gestora
portuguesa, que integra também o grupo de conselheiros para o Acordo de
Parceria Transatlântica (TTIP), acrescenta que isto é algo que está a
ser tentado com os EUA mas que é "muito difícil" por haver mesmo
legislação que protege as empresas americanas.
"Com este
acordo com o Canadá, os governos das províncias assumiram o compromisso a
abrir os seus próprios mercados. Era algo que parecia muito difícil –
que também os níveis sub-federais se comprometessem com um acordo
internacional. A ideia é que não haja discriminação, que as empresas
europeias sejam tratadas da mesma forma [que as locais] e que haja
também maior transparência e acesso a informação", resume a directora do
organismo que representa os empregadores europeus, em declarações a
partir de Bruxelas.
Afinal, quem ganha mais?
As autoridades europeias estimam que, em termos globais, o acordo selado com um aperto de mão
entre Jean-Claude Juncker, Donald Tusk e o primeiro-ministro do Canadá,
Justin Trudeau – que deverá ser validado pelo Parlamento Europeu em
Janeiro de 2017 – possa aumentar a trocas comerciais bilaterais em 20%,
com ganhos anuais de 12 mil milhões de euros para as economias do bloco
europeu e um impacto positivo de 8,26 mil milhões para a canadiana.
Segundo
dados da Comissão Europeia, em 2015 o Canadá vendeu cerca de 28 mil
milhões de euros em produtos para a UE, enquanto os 28 Estados-membros
exportaram mais de 35 mil milhões de euros nessa categoria, com um saldo
comercial favorável de sete mil milhões de euros. Para Helena
Guimarães, quando tudo colocado nos pratos da balança, "a importância
económica deste acordo é maior para o Canadá", que garante um acesso
mais facilitado a mais de 500 milhões de consumidores e àquele que é o
segundo maior mercado, enquanto o Canadá é apenas o 12.º maior parceiro
comercial para os países da EU.
Também na perspectiva do
Investimento Directo Estrangeiro (IDE), esta professora da Universidade
do Minho, cuja principal área de investigação é a economia política do
mercado único, recorda que o investimento canadiano no Velho Continente é
"muito maior do que o europeu no Canadá". Com "posições relativas tão
diferentes", conclui que "pode haver acréscimos, mas não [lhe] parece
que cheguem para aproximar [estes valores]".
Trocar as voltas aos EUA
Do
ponto de vista político, porém, a autora do livro "Economia Política do
Comércio Internacional" considera que este acordo é relevante para a UE
por "servir de modelo" para as negociações enguiçadas com os Estados Unidos,
dando "de alguma maneira uma ideia de até onde pode e quer ir na
negociação do TTIP, que está mais atrasado e em que a negociação é mais
complicada". Sobretudo no que toca à eliminação das barreiras
regulatórias, que passam obrigatoriamente por alguma harmonização entre
as duas partes.
"Este acordo pode ser importante não tanto
pelo acesso aos mercados ou investimento, mas porque marca a posição da
UE e marca alguns pontos na capacidade de ser ‘rule maker’ – ou seja,
veicular as suas posições nas questões regulatórias que têm sido muito
sensíveis [nas discussões com os EUA] – e não ‘rule taker’. Este tem
sido o seu grande problema nas negociações do TTIP. Esta negociação vai
agora condicionar a acção da UE, espera-se que positivamente", explica
Helena Guimarães.
Também na perspectiva da Câmara de
Comércio e Indústria Portuguesa, o fecho deste acordo é "uma matéria de
relevância estratégica para Portugal, já que outros acordos em
negociação ou cuja negociação agora se inicia – respectivamente TTIP
e Mercosul – são de importância fundamental para as empresas
portuguesas".
Uma "nova geração" de acordos
Por
ir "bem mais além do que a mera redução dos direitos aduaneiros e das
tarifas" e envolver uma harmonização regulatória e até as controversas
matérias de investimento – inclui um mecanismo de resolução de conflitos
entre as duas partes que permite a uma multinacional processar um
Estado que adopte uma política pública contrária aos seus interesses –, a
especialista atesta que este entendimento com o Canadá, muito pela
abrangência que acaba por ter, "faz parte de uma nova geração de acordos
de integração comercial e até económica, em termos mais gerais".
E
já está e vai continuar a assumir uma outra dimensão de economia
política, com alguns países europeus a quererem usar o CETA como "moeda
de troca" para obterem vantagens noutros domínios. Por exemplo, a
Roménia e a Bulgária já sinalizaram que só ratificam o acordo nos seus
Parlamentos se o Canadá eliminar a necessidade de vistos para os
cidadãos destes países que pretendam visitar aquele país do continente
americano.
A professora de economia política
internacional, integração europeia e economia política do comércio
internacional salienta ainda que este acordo pode trazer "vantagens
estratégicas" de "first mover" para a UE nas negociações dos chamados
acordos mega-regionais, que estão a aparecer como opção aos
entendimentos no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC). Isto
porque, conclui Helena Guimarães, as negociações nesse quadro "estão tão
paralisadas e arrastam-se desde o início do ciclo de Doha em 2001" que
"os países estão a encontrar formas alternativas de negociarem os
acordos comerciais - e estas são agora as dinâmicas preponderantes".
* Mantemo-nos cépticos, esperar para ver.
.
Sem comentários:
Enviar um comentário