O nosso homem em Belém
Este é um livro que parece ter sido escrito por Vítor Le Carré, o primo tantã de John Le Carré
O livro de Fernando Lima, ex-assessor de Cavaco Silva, tem uma
qualidade da qual poucas obras se podem gabar: o final, apesar de não
ser surpreendente, é extremamente satisfatório. No fim, Cavaco abandona a
presidência e vai para casa. Há muito tempo que não lia uma história
com um final tão feliz. Sou capaz de me ter emocionado. Apesar disso, o
leitor chega ao fim de Na Sombra da Presidência – relato de 10 anos em
Belém com a sensação de que o livro é aquilo a que a moderna crítica
literária costuma chamar “uma chatice do catano”. A obra começa com a
frase “Este é o livro que não gostaria de ter escrito”, mas o autor
disfarça bastante bem, uma vez que aproveita as 400 páginas seguintes
para ajustes de contas que parecem dar-lhe bastante prazer.
O
livro dedica-se sobretudo a registar e lamentar esta infeliz
coincidência: desde o momento em que Lima foi afastado, a comunicação
política de Cavaco descambou e o Presidente acabou em desgraça. De
coração apertado, o autor vê-se forçado a citar opiniões de colunistas
como Paulo Pinto Mascarenhas, que escrevia, em Janeiro de 2012: “Diz-se
(…) que a culpa é de quem afastou Fernando Lima do cargo de responsável
pela assessoria para a Comunicação Social de Belém” (p. 312). Ou José
Eduardo Moniz, que contava: “Já aparece gente a dizer que Fernando Lima
lhe faz muita falta…” (p. 312). Ou Rui Calafate, cuja opinião Lima foi
recolher a um blogue: “(…) o inquilino de Belém há muito que perdeu o
contacto com a realidade (…). Esse divórcio e essa perda de controlo
foram visíveis a partir do momento em que Cavaco Silva deixou cair
Fernando Lima” (p. 369). Lima ainda comenta, a medo que são
“gratificantes essas referências pessoais (…)”, mas percebe-se que está
devastado, o pobre.
O facto de a sua extraordinária competência
fazer dele um elemento sem o qual Cavaco Silva é incapaz de viver não é o
único drama que Fernando Lima carrega. A outra grande ideia do livro é
esta: todos os protagonistas da vida política portuguesa são embusteiros
sem escrúpulos, com uma única excepção, que é Fernando Lima. Parece que
há maroscas pouco claras e se joga sujo, nisto da luta política.
Confesso que me sobressaltei. O melhor exemplo de trapaça é o chamado
“caso das escutas”. Lima desconfia que todas as suas comunicações
estavam sob vigilância por ordem de José Sócrates. Não tenho dificuldade
em acreditar nesta suspeita, até porque o tempo se tem encarregado de
demonstrar que boa parte das suspeitas sobre José Sócrates costuma
confirmar-se. Mas o que Lima relata só pode ser descrito através da
expressão “espionagem das barracas”. Este é um livro que parece ter sido
escrito por Vítor Le Carré, o primo tantã de John Le Carré. Diz assim:
“Na tarde de 4 de Setembro de 2010, recebi um SMS de um amigo a
alertar-me de que estava a ser alvo de um ataque desenfreado na caixa de
comentários da crónica de Ferreira Fernandes no Diário de Notícias” (p.
215). Segundo Lima, os espiões tinham tido acesso a mensagens do seu
telemóvel e aproveitado essa informação para o difamar. Onde? Na caixa
de comentários de um jornal. Os espiões não foram meigos. Escolheram
cruelmente um palco bem visível e onde as intervenções têm, em geral,
uma credibilidade acima de qualquer suspeita. Talvez um dia se assista a
uma troca de opiniões descabelada numa caixa de comentários, mas até
isso acontecer aquele é o melhor local para levar a cabo uma operação
que tenha como objectivo denegrir a imagem do assessor de um Chefe de
Estado. Dizem--me que o próximo filme do 007 decorre integralmente na
caixa de comentários de uma crónica de Ferreira Fernandes. Daniel Craig
salva o planeta desmontando os argumentos de uma quadrilha de
comentadores com as siglas “WTF” e “LOL”.
IN "VISÃO"
22/09/16
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