07/09/2016

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HOJE NO 
  "OBSERVADOR"

Toda a história do ‘saco azul’ do GES

Foi criado para remunerar os líderes da família Espírito Santo, financiou-se através dos clientes do BES e recebeu 200 milhões de euros em 2013 que deviam ter servido para amortizar dívida do GES.

Lisboa. Campus da Justiça, na zona da Expo. Na sala principal do Tribunal Central de Instrução Criminal estão o juiz Carlos Alexandre, o procurador-geral adjunto Rosário Teixeira, Ricardo Salgado e os seus advogados. Estamos a 24 de julho de 2014 e lá fora estão dezenas de jornalistas de todas as televisões, rádios e jornais em diretos constantes numa cacofonia mediática justificada: é a primeira vez que o outrora todo-poderoso líder da família Espírito Santo presta contas à justiça como arguido.
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Salgado estava a ser ouvido há mais de duas horas depois de ter sido detido naquela manhã na sua mansão perto da Boca do Inferno, em Cascais, por suspeitas de fraude fiscal e branqueamento de capitais na Operação Monte Branco. O nome da sociedade offshore Espírito Santo (ES) Enterprises já tinha sido abordado por diversas vezes durante o interrogatório. O procurador Rosário Teixeira quer saber o que é e para que serve esta empresa que não faz parte do organograma do Grupo Espírito Santo (GES) e que teria sido extinta em meados da década de 2000. O magistrado do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) anda intrigado desde que descobriu a sociedade no meio de transferências do GES para a Green Emerald — outra empresa offshore, mas detida por Hélder Bataglia, o homem forte do GES em África. Pelas suas contas, e contando com outras transferências que não incluíam Bataglia, a ES Enterprises teria movimentado cerca de 20 milhões de euros.

Rosário Teixeira insiste em saber como era financiada a ES Enterprises. No seu estilo fleumático, que mistura a aparência de um lorde inglês com uns olhos azuis glaciares acompanhados de uma voz arrastada que pretende inibir o interlocutor, Ricardo Salgado terá recorrido ao léxico técnico de banqueiro para explicar ao magistrado do DCIAP que a ES Enterprises era uma sociedade de disponibilidade transitória de capitais. Salgado, contudo, não terá dado uma resposta definitiva, tendo alegadamente estabelecido o compromisso de que iria tentar perceber como se processaria o financiamento da sociedade porque a sua memória, naquele preciso momento, não lhe dizia nada. Rosário Teixeira não ficou satisfeito e ter-lhe-á prometido, em resposta, que também iria analisar a fundo o assunto.

O procurador desconfiava que a ES Enterprises era um saco azul, já que não tinha atividade, não tinha património e muito menos rendimento próprios. Limitava-se a ser uma porta giratória de dinheiro, muito dinheiro, entre o GES e quem Ricardo Salgado quisesse. Salgado e os seus advogados saíram do interrogatório conscientes de que a ES Enterprises viria a ser um problema no futuro.

O mínimo que se pode dizer é que tinham razão — como puderam constatar um ano mais tarde, quando Ricardo Salgado foi constituído arguido pela segunda vez mas no caso BES. Desta vez foi José Ranito, procurador da República e responsável pela equipa que investiga aquele caso no DCIAP, quem lhes terá explicado que os novos indícios faziam com que os 20 milhões de euros anteriormente referidos fossem apenas uma pequena parte de mais de 300 milhões de euros de dinheiro que o MP relacionava com alegados crimes de corrupção, fraude fiscal e branqueamento de capitais — e cujo circuito financeiro estava a ser reconstruído pela equipa de Ranito.

Os indícios recolhidos pelos investigadores indicarão que esse montante terá tido uma utilização diversificada:
  • Pagamento de comissões alegadamente ilícitas a titulares de cargos públicos e políticos pela adjudicação de contratos públicos;
  • Pagamento de remunerações a membros da família Espírito Santo através de paraísos fiscais;
  • Pagamento de alegados prémios a funcionários e administradores que não eram declarados ao fisco.
1-Como tudo começou: 
os pagamentos à família

Recuemos ainda mais no tempo, aos anos 70. Obrigados a sair do país após o 11 março de 1975, os Espírito Santo dividiram-se pelo Reino Unido, Suíça, Espanha e Brasil e trabalhavam para reconstruir o seu império financeiro. Com o financiamento das famílias Rothschild, Rockfeller e Agnelli e de bancos como o JP Morgan (Estados Unidos) ou o Royal Bank of Canada, abriram um banco no Brasil (Banco Interatlântico) e diversas sociedades financeiras em Lausanne (Suíça), Londres (Reino Unido), Paris (França) e no Luxemburgo.

Neste último país, foi criada logo em 1975 a Espírito Santo International (ESI) Holding — mais conhecida por ESI e hoje insolvente. A ESI congregava todos os novos investimentos da família Espírito Santo e seria, a partir daí, a holding da área financeira do GES.

Quando regressaram a Portugal no final dos anos 80, os homens à frente dos negócios da família Espírito Santo tomaram precauções para não voltarem a ficar sem nada. Mantiveram a ESI como cabeça do grupo mas acrescentaram, segundo o livro Ricardo Salgado — O Último Banqueiro, das jornalistas Maria João Gago e Maria João Babo, três subholdings:
  • Espírito Santo Financial Group (ESFG), com sede no Luxemburgo, para concentrar os interesses na área financeira;
  • Espírito Santo Resources, com sede no offshore das Bahamas, para reunir os investimentos na agricultura (Brasil e Paraguai), turismo e imobiliário;
  • Esfil – Espírito Santo Financière, com sede no Luxemburgo e detida pela ESFG, que agrega mais concretamente os negócios bancários em França e na Suíça.
Quer isto dizer que, quando os principais representantes da família Espírito Santo regressaram a Portugal em 1989 para participar nos processos de privatização do Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL) e da seguradora Tranquilidade (empresas estas que pertenciam à família antes do 25 de Abril), já existia um pequeno GES lá fora.

O que tem o ‘saco azul’ a ver com tudo isto? Tudo. É a partir do regresso da família a Portugal que nasce a necessidade de manter o GES operacional no estrangeiro e de saber como seriam pagos os salários dos Espírito Santo que acumulavam cargos no BESCL (futuro BES, a partir de 1999) com posições nas sociedades internacionais que continuavam naturalmente a operar nos mercados onde estavam presentes.

Foi decidido então pelos representantes dos cinco clãs da família Espírito Espírito (Espírito Santo, Salgado, Moniz Galvão, Ricciardi e Mosqueira do Amaral) que receberiam uma parte do salário em Portugal, no que diz respeito à sua atividade no BESCL e noutras sociedades portuguesas, e outra parte através da Espírito Santo International, sociedade offshore com sede nas Ilhas Virgens Britânicas. Conhecida pela designação de ESI – BVI (British Virgin Islands), era detida pela ESI do Luxemburgo.

A partir de 1993, data avançada em abril pelo Expresso e pela TVI para a criação da ES Enterprises nas Ilhas Virgens Britânicas, esse papel da ESI-BVI foi assumido pela nova sociedade. Aliás, a ES Enterprises terá sido criada pelos líderes dos cinco clãs da família Espírito Santo especificamente para proceder aos pagamentos relacionados com a atividade internacional dos membros da família.

Juntamente com a ES Enterprises (que, em 2007, muda de nome para Enterprises Management Services), o funcionamento pormenorizado da ESI-BVI apenas era do conhecimento dos líderes dos cinco clãs da família Espírito Santo, assim como dos quadros de maior confiança de Ricardo Salgado, como José Castella, controler do GES, e Francisco Machado da Cruz, o famoso contabilista do GES. Mas, ao contrário da ES Enterprises, que não fazia parte do organograma oficial do GES, a ESI – BVI era conhecida. Aliás, Salgado chegou a dizer na Comissão Parlamentar de Inquérito que a ES Enterprises devia constar da árvore do organograma abaixo da ESI-BVI mas que tal não tinha acontecido devido “a uma falha”.

O semanário Expresso, no âmbito do caso dos Panama Papers, já tinha revelado em abril um conjunto de sociedades offshore criadas por António Ricciardi, Manuel Fernando Espírito Santo e Mário Mosqueira do Amaral (líderes de três dos cinco clãs Espírito Santo) que indiciavam que a remuneração à margem da contabilidade oficial do BES e do GES era uma prática antiga e corrente na família.

Ao que o Observador apurou, Ricardo Salgado terá sido confrontado pelo Ministério Público com os pagamentos feitos a membros da família por parte da ES Enterprises, aquando do interrogatório no caso ocorrido em julho de 2015, tendo confirmado o papel histórico da ESI-BVI no pagamento dessas remunerações, assim como a sua substituição pela ES Enterprises.

Salgado terá justificado estes pagamentos com uma alegada preocupação de não sobrecarregar os custos no BESCL com os salários da administração aquando do regresso da família a Portugal. O ex-banqueiro terá admitido que os cinco clãs da família recebiam exatamente a mesma quantia e terá explicado como tudo se processava:
  • Calculava-se, em primeiro lugar, o que cada um dos líderes recebia nas unidades em Portugal e o diferencial que existia entre esses valores e os que estavam estabelecidos para os cargos que os mesmos responsáveis tinham na área internacional do GES;
  • A diferença apurada era paga pela sociedade offshore ESI-BVI, tendo esta sido substituída a partir de 1993 pela ES Enterprises;
  • A única condição para o pagamentos dos valores passava pela obrigatoriedade de os líderes dos cinco clãs terem responsabilidades equivalentes no grupo.
Salgado terá prometido disponibilizar documentos ao MP sobre essa matéria.

O Observador enviou 11 questões para Ricardo Salgado de forma a esclarecer diversos pormenores da ES Enterprises, mas a sua assessoria de imprensa limitou -se a dizer que o “dr. Ricardo Salgado não comenta processos em segredo de justiça”.

Confrontado com o mesmo conjunto de questões, José Manuel Espírito Santo afirmou através do seu advogado, Rui Patrício, que “não tem feito comentários públicos sobre estas matérias, nem sobre outras que também estarão em investigação — e está ao inteiro dispor desta e aguarda conhecer o que a mesma vier a apurar. Não pretende, pois, comentar as questões colocadas”. O advogado afirmou ainda que José Manuel Espírito Santo “nem aliás poderia sequer fazê-lo quanto à maior parte das questões, por desconhecer os assuntos em causa”.

Já Manuel Fernando Espírito Santo, representante do ramo Moniz Galvão, afirmou ao Observador que, pelo facto de as questões se relacionarem com “terceiras pessoas e se aludir a responsabilidades sob investigação pelas autoridades, prefiro abster-me de qualquer comentário nesta fase”.

O Observador contactou igualmente António Ricciardi, enviando o mesmo conjunto de perguntas que mandou para os restantes líderes da família Espírito Santo, mas não obteve qualquer resposta.

2-Mosqueira do Amaral
 desmente Salgado


Foi no contexto dos pagamentos aos líderes dos clãs da família Espírito Santo que Ricardo Salgado terá chegado mesmo a dar o exemplo de Pedro Mosqueira do Amaral, líder do clã Mosqueira do Amaral. Ao que o Observador apurou, o ex-líder executivo do BES terá afirmado ao Ministério Público que Mosqueira do Amaral recebia uma remuneração complementar por viver na Alemanha e por representar o BES naquele país e na Polónia, ao mesmo tempo que era obrigado a vir regularmente a Portugal.

Não é claro, contudo, que Mosqueira do Amaral recebesse tal remuneração complementar pela ES Enterprises.

Contactado pelo Observador, Pedro Mosqueira do Amaral desmente categoricamente as afirmações de Ricardo Salgado ao MP. O gestor afirmou que “é falsa qualquer informação de que eu tenha recebido ou tenha sido remunerado pela ES Enterprises. Os meus salários foram pagos exclusivamente pelo balanço do BES devido ao meu trabalho na Alemanha de forma totalmente transparente por lei, contratos e e com o respectivo enquadramento fiscal obrigatório”. O filho de Mário Mosqueira do Amaral vai mesmo mais longe e acrescenta que nunca foi remunerado por qualquer sociedade localizada em paraísos fiscais — como era o caso da ES Enterprises e de outras sociedades do GES.

Sobre a ES Enterprises, a ESM ou a ESI-BVI, Pedro Mosqueira do Amaral afirmou não ter “qualquer conhecimento sobre essas empresas e os seus objetivos” e que nunca recebeu “qualquer tipo de fundos dessas sociedades”. No que diz respeito especificamente à ES Enterprises, o gestor radicado na Alemanha diz mesmo que “não sabia sequer que essa entidade existia”.

Recorde-se que Pedro Mosqueira do Amaral afirmou em abril último, em declarações ao Expresso, que a existência do ‘saco azul’ do GES é “uma vergonha” e “um roubo aos acionistas”.“Ficarei muito contente em saber quem consta dessa lista”, já que os pagamentos foram feitos à revelia dos acionistas e não constam da contabilidade do BES e do GES, afirmou.

Já Ricardo Salgado terá admitido ao MP em 2014, no seu primeiro interrogatório como arguido no caso Monte Branco, que tinha recebido da ES Enterprises cerca de 4 milhões de euros a título de empréstimo, e terá repetido um ano mais tarde, como arguido do caso BES, que ainda teria uma dívida de 2 milhões de euros para com o ‘saco azul’ do GES. Ou seja, apenas teria reembolsado metade do dinheiro que tinha recebido — fundos esses que terão servido para adquirir ações da EDP durante a fase de privatização em que o BES Investimento assessorava a eléctrica nacional, como o Observador noticiou.

Não terá sido a única vez que Ricardo Salgado terá recebido fundos da ES Enterprises. Também os 5 milhões de euros correspondentes a uma parte da comissão paga à Escom pelo consórcio alemão que vendeu dois submarinos ao Estado português terão chegado às contas bancárias dos líderes dos cinco clãs da família Espírito Santo através da ES Entreprises.

3-As “remunerações complementares” do GES


Existirão igualmente documentos bancários na posse do MP que apontam para que, além dos membros da família Espírito Santo, também um conjunto alargado de diversos administradores do BES e do GES tenham recebido remunerações complementares da ES Enterprises. A legalidade de boa parte de tais pagamentos estaria, aparentemente, protegida com contratos de prestação de serviços que os beneficiários dos fundos terão assinado com a ES Enterprises, a Enterprises Management Services (EMS) e outras sociedades offshore do grupo.

Na realidade, tais remunerações complementares terão sido atribuídas a título de prémio anual. O facto de tais valores estarem relacionados com atividades em Portugal mas nunca terem sido declarados ao fisco português, pode configurar, na ótica do MP, os crimes de fraude fiscal qualificada e de branqueamento de capitais.
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A mesma lógica de atribuição de prémios pagos pela ES Enterprises e pela EMS foi alargada a diretores e até mesmo a altos funcionários do BES, desde, pelo menos, 2006. Sendo que a atribuição dos prémios era alegadamente aprovada, em primeira mão e de forma genérica, por Amílcar Morais Pires, administrador executivo e chief financial officer do BES, e por Isabel Almeida, responsável pelo importante Departamento Financeiro, de Mercados e Estudos. Ao que o Observador apurou, o próprio Ricardo Salgado terá confirmado isso mesmo ao MP.

As extensas listas de pagamentos a funcionários do BES e do GES que recebiam estas “remunerações complementares”, como eufemisticamente seriam apelidadas por Ricardo Salgado, terão chegado ao conhecimento do procurador José Ranito, responsável pela investigação do caso BES, por intermédio do Ministério Público Federal da Confederação Helvética. O MP suíço realizou buscas à sede do Banque Privé Espírito Santo, instituição financeira suíça detida pelo GES, e a diversas sociedades helvéticas do grupo, como a ES Services, tendo sido apreendido um conjunto muito vasto de documentação que revela como funcionava e quem recebia do ‘saco azul’ do GES. Tudo no âmbito da carta rogatória que foi expedida pelo DCIAP para a Suíça.

Foi através dessa documentação que se tornou possível ao MP reconstituir pagamentos que também foram realizados a administradores de empresas participadas pelo BES e pelo GES, como é o caso de Zeinal Bava, ex-líder da Portugal Telecom (PT), assim como a Carlos Santos Silva, alegado testa-de-ferro de José Socrates. Neste último caso, o procurador Rosário Teixeita terá a convicção de que os fundos destinavam-se ao ex-primeiro-ministro e serão uma alegada contrapartidada por decisões tomadas pelo governo de Sócrates.

Ricardo Salgado sempre contextualizou publicamente a ES Enterprises (e a empresa que lhe sucedeu, a EMS) como uma mera empresa de serviços de partilhados. Isto é, e tal como a ES Services fazia, a ES Enterprises prestaria apenas serviços a outras empresas do grupo, como processamento de salários, serviços informáticos ou de contabilidade, sendo remunerada por esses serviços.

Esta tese de Salgado, que terá sido mantida nos interrogatórios a que foi sujeito em 2014 e 2015 no Tribunal Central de Instrução Criminal e no DCIAP, não bate certo com as transferências que terão sido detectadas não só para individualidades exteriores ao GES, como também para quadros do BES e do GES.

De acordo com um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que analisou um recurso da defesa de Salgado a propósito das medidas de coação aplicadas pelo juiz Carlos Alexandre, o MP entenderá que as explicações do ex-líder do BES não são credíveis. E, no que à tese dos serviços partilhados diz respeito, o MP dá mesmo como exemplo o facto de terem sido detectadas inúmeras transferências para familiares dos funcionários do BES, com o alegado objectivo de dissimular os destinatários desses fluxos.

Os contratos de prestação de serviço que alguns colaboradores do BES assinaram com a ES Enterprises serão encarados pelo MP como alegadamente fraudulentos, já que visarão apenas dissimular a fraude fiscal alegadamente praticada. Tanto mais que os alegados prémios e contratos assinados não têm qualquer adesão aos resultados das actividades do GES, nomeadamente face ao real estado negativo das contas da ESI e de outras sociedades do grupo.

4-Como era financiado


A grande maioria dos fundos que entravam na ES Enterprises tinham origem na sociedade offshore Espírito Santo International, sedeada nas Ilhas Virgens Britânicas — e conhecida por ESI-BVI.
A ESI-BVI, por seu lado, transmitia fundos à ES Enterprises que tinham origem nas seguintes sociedades:
  • ESI — A sua casa-mãe com sede no Luxemburgo. Era uma das sociedades de controlo da família Espírito Santo, que foi criada em 1975 e entrou em insolvência em 2015;
  • Eurofin — Sociedade suíça gestora de activos acusada pelo Banco de Portugal de ter alegadamente ajudado Ricardo Salgado a manipular a contabilidade do grupo e de ter alegadamente prejudicado o BES em mais de 1,3 mil milhões de euros. O Banco de Portugal e o MP têm indícios de que a gestão da empresa, que foi criada por ex-quadros do GES, era influenciada de forma decisiva pelo GES;
  • Espírito Santo Resources — Empresa da área não financeira com sede no offshore das Bahamas que, por exemplo, detinha a Escom e outros activos em África e na América do Sul;
  • Euroasian — Sociedade financeira gerida por Michel Ostertag.
Este financiamento por entidades terceiras verificava-se porque a ES Enterprises não era uma holding operacional. Ou seja, não tinha património nem receitas próprias e funcionava com uma regra básica: todos os anos tinha de estar ‘zerada’. Isto é, tinha de ter um saldo zero no dia 31 de dezembro de cada ano fiscal entre proveitos (entradas de dinheiro) e custos (saídas de dinheiro).
Explicando cada um dos pontos. Comecemos pela ESI — a grande financiadora nos primeiros anos da ES Entreprises através da ESI-BVI.

A ESI era financiada, essencialmente, através de dois tipos de fluxos financeiros:
  • Dividendos do BES;
  • Emissão de dívida que era colocada essencialmente junto dos clientes do BES. A última emissão de relevo, no valor de 540 milhões de euros, terá sido realizada em 2002.
Significa isto que o pagamento de “acréscimos remuneratórios” ou de alegadas ‘luvas’ era financiado com os lucros gerados pelo BES e pelos clientes do banco que compravam os títulos de dívida emitidos pela ESI.

Para ser mais preciso: a partir de 2007/2008, altura em que o BES deixou de pagar dividendos aos seus acionistas, o ‘saco azul’ do GES foi financiado praticamente com a emissão de dívida.

Já o caso do financiamento pela Eurofin prendia-se com uma alegada dívida da sociedade à ESI. Mais tarde, e como veremos mais à frente, o Eurofin transferiu cerca de 200 milhões de dólares para o ‘saco azul’ do GES.

No que diz respeito à ES Resources, trata-se de uma subholding do GES que, depois ter sido criada nos anos 70 para reunir activos na área da agricultura, turismo e imobiliários, passou a ter nos anos 90 a sociedade Escom e os negócios em África como uma das suas principais fontes de receita. A ES Resources tinha ligações muito próximas com o Banco Espírito Santo Angola (BESA) e foi através desta instituição de crédito que terá financiado a ES Enterprises.

A Euroasian, por seu lado, é uma sociedade gerida por outro velho conhecido de Ricardo Salgado, o também suíço Michel Ostertag, ex-colaborador do GES que saiu para criar novas sociedades que prestavam serviços ao grupo.

A Euroasian é uma sociedade financeira que captava dinheiro para o GES junto da comunidade portuguesa na Venezuela, vendendo produtos financeiros como títulos de dívida do grupo de Ricardo Salgado ou ações preferenciais em sociedades comerciais da órbita do GES.

Os recursos captados pela Euroasian terão entrado no GES por via da ESI-BVI, sendo que parte dos mesmos serviam para financiar a ES Enterprises — facto que era do desconhecimentos dos clientes.

A pista da Euroasian, contudo, não está ainda totalmente esclarecida por parte do MP. Ao que o Observador apurou, a equipa liderada pelo procurador José Ranito não perceberá a utilidade para o GES de assinar um acordo (designado de internal agreement) com a Euroasian de Michel Ostertag para captar recursos de clientes que já eram do próprio GES. É um pouco como oferecer clientes a uma terceira entidade, pagando sem necessidade uma comissão a essa entidade para gerir clientes que já eram seus.

A dúvida dos investigadores é simples de explicar: terá servido a Euroasian para pagar alegadas comissões a responsáveis políticos venezuelanos ou de outros países como contrapartida pela contratação de empresas do GES? O MP ainda procura uma resposta para esta pergunta.
Michel Ostertag criou ainda diversas sociedades financeiras no Dubai e em Macau que tambem terão ligações ao GES e a Ricardo Salgado.

5-Como funcionava


A ES Enterprises tinha dois administradores da total confiança de Ricardo Salgado: José Castella, quadro do GES que assumia funções de controller financeiro no BES e nas principais sociedades do GES, e Francisco Machado da Cruz, o famoso commissaire aux comptes que terá alterado as contas da ESI por ordens de Salgado.

Ambos terão já afirmado ao procurador José Ranito nos autos do caso BES que apenas obecediam a ordens de Ricardo Salgado em todas as sociedades onde estavam por indicação do GES. No que diz respeito à ES Enterprises, os dois gestores terão alegado desconhecimento quanto às operações realizadas pela empresa, indicando ambos o nome do suíço Jean-Luc Schneider como o homem que tratava daquela operação — e que respondia directamente a Ricardo Salgado.

A versão de Salgado terá sido substancialmente diferente: Castella e Machado da Cruz eram os administradores da empresa, tinham autonomia para tomar as decisões que se impunham, logo eram eles que determinavam a gestão da sociedade. Existe, contudo, um ponto em comum nos três testemunhos: Jean-Luc Schneider era o operacional da ES Enterprises. Segundo Salgado, era este quadro suíço da Esfil – Espírito Santo Financière quem aprovava as operações e realizava as transferências bancárias. O ex-líder do BES, contudo, terá admitido que Schneider respondia a si e que algumas dessas operações, como a transferência de 18,5 milhões de euros para Zeinal Bava, foram por si autorizadas.

Schneider abandonou em 1989 uma empresa na área da saúde (a American Medical International, onde foi diretor para o mercado suíço) para entrar na Espírito Santo Financial Group (ESFG) e na Esfil. Subiu a hierarquia da família e ganhou a confiança de Ricardo Salgado, chegando a Chief Accounting Officer e vice-presidente da ESFG, segundo a Bloomberg.

A ES Enterprises, com sede no centro offshore das Ilhas Virgens Britânicas, tinha duas contas bancárias conhecidas: uma no Banque Privée Espírito Santo, na Suíça, e outra no Banque Internationale à Luxembourg, no Luxemburgo, como o Expresso e a TVI já revelaram. Era Jean-Luc Schneider quem geria essas contas bancárias e era a partir destas contas que eram feitos os pagamentos que estão sob suspeita.

Uma das várias questões que falta explicar sobre o ‘saco azul’ do GES reside na sua aparente clandestinidade. De acordo com declarações de Manuel Fernando Espírito Santo ao Observador, a ES Enterprises “teria sido extinta em meados da década de 2000” — pelo menos, era isso que o líder do clã Moniz Galvão (por indicação da sua mãe) e os restantes ramos da família pensavam. José Castella e Francisco Machado da Cruz, administradores da sociedade, terão feito idênticas declarações ao MP.

Certo é que a ES Enterprises, e a sua sucessora (Enterprises Management Services), terão continuado a realizar avultadas transferências operacionalizadas por Jean-Luc Schneider sob as instruções, de acordo com as suspeitas do MP, de Ricardo Salgado.

6-A história dos 200 milhões


Dos 300 milhões de euros que terão sido movimentados pela ES Enterprises, há uma soma que se destaca no circuito financeiro que está a ser reconstituído pela equipa do procurador José Ranito: 200 milhões de euros.

São 200 milhões de euros que terão sido transferidos pelo Eurofin para a ES Enterprises em 2013. O Eurofin, que é acusado pelo Banco de Portugal de ter prejudicado o BES em mais de 1,3 mil milhões de euros, foi criado por Alexander Kadosch em 1999 depois de o financeiro ter saído do GES, onde foi vice-presidente da Gestar. Desde o início que a sociedade financeira com sede em Lausanne se envolveu nos negócios do GES, criando produtos estruturados, gerindo fundos do GES e actuando como um intermediário entre o BES e o GES e os clientes de retalho das sociedades da família Espírito Santo. Apesar de ter outras actividades, o GES era o principal cliente do Eurofin.

A Espírito Santo (ES) Resources, uma das principais empresas da área não financeira do GES, chegou a ter 23% do capital do Eurofin, como noticiou em 2014 o Wall Street Journal. E foi precisamente a ES Resources que, de acordo com as contas do Banco de Portugal, chegou a adiantar ao Eurofin um total de 4 mil milhões de euros para investimento.

Em 2013, quando o Banco de Portugal começou a apertar a vigilância aos negócios da família Espírito Santo e quando a dívida do GES já estava descontrolada, o Eurofin foi obrigado a desmobilizar cerca de 200 milhões que, aparentemente, pertenceriam à ES Resources. O problema é que, em vez de ser esta última sociedade a receber os fundos, os mesmos foram transferidos para a conta do ‘saco azul’ do GES.

O MP terá uma dúvida simples: por que razão os 200 milhões de euros terão sido transferidos para uma empresa (a ES Enterprises), que nem sequer faz parte do organograma do GES, em vez de servirem para amortizar a dívida colossal que o GES tinha em 2013?

A pergunta é pertinente se recordarmos o contexto da ES Resources e do GES em 2013. Como Mariana Mortágua (deputada do BE na Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES) explica no seu blogue, existiam duas ES Resources. Uma com sede no centro offshore das Bahamas e outra no Luxemburgo. A primeira foi criada no final dos anos 80 para agregar as participações na área não financeira (como investimentos na agricultura, turismo e imobiliário ou participações em empresas como a Escom), enquanto que a segunda foi criada em 2009 depois da crise do subprime nos Estados Unidos. A ES Resources Luxemburgo ficou com os bons activos, enquanto a sua irmã tropical do Atlântico Norte ficou com as dívidas.

E foi aqui nasceu a necessidade de o GES esconder o passivo real que devia estar reflectido nas contas da holding ESI — passivo esse que, em termos acumulados, ascendeu a cerca de 1,3 mil milhões de euros e que só veio a ser reconhecido no final de 2013.

A ES Resources Luxemburgo foi transformada em Rioforte em 2009 com o objetivo de vender a empresa para pagar a dívida da irmã das Bahamas. Tal objetivo, contudo, nunca foi atingido e, no final de 2013, a dívida real do GES estava avaliada em 8,9 mil milhões de euros.

Repete-se a pergunta: por que razão o Eurofin transferiu 200 milhões para o ‘saco azul’ do GES em vez de transferir para a ES Resources (seja das Bahamas, seja do Luxemburgo)?
Ricardo Salgado não terá ainda uma resposta clara sobre esta matéria e continua a refugiar-se numa palavra que passou a utilizar recorrentemente desde 2013 (“falha”) e na alegada falta de tempo para acompanhar todos esses processos da área não financeira do GES quando estava concentrado na gestão do BES. Salgado terá apontado ainda o dedo a dois quadros que tinham precisamente a função de acompanhar esses assuntos e grande autonomia para tomar decisões: José Castella e Machado da Cruz.

O ex-líder do BES, contudo, terá confirmado um facto relevante: todo o dinheiro desmobilizado pela Eurofin a partir de 2013 foi todo para a ES Enterprises.

Resta outra questão tão ou mais pertinente: o que fez a ES Enterprises com esses fundos avultados um ano antes de o GES implodir? Quem recebeu esse dinheiro? Ainda não há resposta conhecida.
Outro facto que adensa o mistério: as datas das transferências realizadas pela ES Enterprises para Zeinal Bava e para Carlos Santos Silva (que, segundo o MP, teriam como destinatário final José Sócrates) são anteriores a 2013.

7-Um banco chamado 
ES Enterprises


Além dos pagamentos de remunerações complementares aos quadros do GES, a ES Enterprises teve outro papel importante nos anos 90: terá captado depósitos na Suíça e realizado aplicações fiduciárias em nome de clientes do GES. Na prática, terá vendido um produto bancário designado na Suíça de placement fiduciaires. No léxico banqueiro de Ricardo Salgado, os placements fiduciaires traduziam um investimento transitório da ES Enterprises.

Aplicações fiduciárias é um conceito que não deverá ser estranho a quem acompanha o caso BES. Traduz um investimento que o banco executa com o conhecimento e responsabilidade do cliente e foi precisamente essa justificação que Zeinal Bava deu ao Observador e ao Expresso para as transferências de 18,5 milhões de euros.

No contexto das captações de depósito que a ES Enterprises realizou nos anos 90 na Suíça, uma aplicação fiduciária traduz um investimento que os clientes decidiram fazer por sua conta e risco no GES.

Ricardo Salgado terá revelado mesmo ao MP que as autoridades de supervisão bancária do Luxemburgo terão aberto um processo de contra-ordenação contra a ES Enterprises por alegada captação de depósitos irregulares – isto é, por actividade bancária ilegal. Aparentemente, tal processo não terá tido consequências de maior para o GES.
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Salgado terá recuperado os argumentos apresentados pelo GES no Luxemburgo para explicar que os clientes realizavam transferências para as contas da ES Enterprises no Banque Privée Espírito Santo na Suíça. Posteriormente, e se os clientes assim desejassem, os fundos eram transferidos para contas bancárias no Luxemburgo.

Ainda está por apurar o total de fundos que terão sido depositados por clientes do GES nas contas da ES Enterprises, assim como as implicações legais de o clientes não terem a noção de que os seus fundos passavam pelo ‘saco azul’ do GES.

A história ainda não terminou.

* Excelente trabalho de investigação do jornalista LUÍS ROSA.
Um conselho: guarde este documento numa pasta.

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