Pode o Presidente
ser quem não é?
A lei das 35 horas foi a primeira clara manifestação de que o Governo saiu da égide do PS moderado. E Marcelo perdeu a oportunidade de mostrar que as suas funções vão muito para lá da promoção hippie da paz, amor e felicidade.
Não, o Presidente Marcelo Rebelo de
Sousa não vai ser um espectador neutro da vida política e limitar-se a
ser um corta-fitas embrulhado em permanentes multidões de crianças
sorridentes. Só não sabemos quando é que ele vai ser o que de facto é –
ou nos disse ser. E quando deixará de ser quem não é, para pegar no
verso famoso de Sérgio Godinho. Com um veto e três promulgações, Marcelo
Rebelo de Sousa ficou em trânsito entre o que tem sido e o que de facto
ambiciona e pode ser. Numa atitude politicamente correcta, travou a lei
da gestação de substituição (conhecida com o horrível nome de “barrigas
de aluguer”) que foi aprovada até com votos do PSD, deixou passar com
alguns “mas” o diploma da Procriação Medicamente Assistida e o fim da
absurda prova de avaliação dos professores e deixou correr o marfim
sobre a lei mais sensível e fracturante – o regresso do horário das 35
horas à Função Pública. Aqui, não houve um veto, mas os avisos são
tantos que é impossível não vislumbrar na atitude do Presidente uma
óbvia cedência às suas convicções.
No juízo de Marcelo
Rebelo de Sousa, a lei das 35 horas não tem ponta por onde se lhe pegue.
Não acode à “diversidade de regime relativamente aos trabalhadores do
sector privado e social, por um lado, e aos trabalhadores do sector
público com contratos individuais de trabalho ou com vínculo precário,
por outro”. É duvidoso que respeite o “princípio constitucional da
igualdade”. É imprudente por avançar “num tempo em que se não encontram
garantidos nem a consolidação das finanças públicas, nem o crescimento
económico sustentado”. Se o Presidente assumisse o que mostra ser nestes
juízos, a lei teria de regressar à Assembleia ou ser alvo de
fiscalização preventiva no Tribunal Constitucional. Mas como ainda está
embevecido pelo estado de graça alimentado pelo estatuto de
Presidente-Rei, concede ao Governo o “benefício da dúvida” e promete
avançar com um pedido de fiscalização sucessiva se, lá para a frente,
houver uma derrapagem nos gastos. Fica portanto a meio da ponte: nos
considerandos, é o velho político conservador; na decisão é o arauto da
tolerância progressista.
É por isso fácil considerar que a ameaça
anexa à promulgação é estranha. Marcelo Rebelo de Sousa promete actuar
caso haja uma violação da norma transitória da lei que impõe um limite
dos gastos em 2016 igual aos do ano passado. Ora, a lei deveria ter sido
promulgada se, e só se, houvesse uma garantia rigorosa de que a redução
dos horários não implica gastos com horas extraordinárias ou com novas
contratações. Como não deve haver muitos crentes nesse milagre de
gestão, o Governo, que tinha inscrito esta cláusula de salvaguarda no
seu programa, deixa subentendido que vai ser possível negociar com os
sindicatos e dizer-lhe: “Desculpem lá, mas para reduzirmos os horários
temos de gastar mais e, por isso, a promessa vai para a gaveta”. Um
irrealismo. Até porque na mesma norma transitória está já prevista uma
saída airosa para quando este cenário acontecer: o diploma promulgado
admite que o limite de gastos seja “afastado quando razões excepcionais
fundadamente o justifiquem”.
Marcelo Rebelo de Sousa tem armas
para actuar nessa eventualidade, mas perdeu a oportunidade de mostrar
que as suas funções vão muito para lá da promoção hippie da
paz, amor e felicidade. A lei das 35 horas foi a primeira clara
manifestação de que o Governo saiu da égide do PS moderado e responsável
para se aproximar das exigências das corporações sindicais do
partido-Estado. Uma lei que divide os portugueses e que envia sinais
errados a Bruxelas e aos que compram títulos de dívida pública, numa
conjuntura que se agrava, devia ter tido o destino que merecia: o do
veto. Fosse Marcelo Rebelo de Sousa ele mesmo era isso que teríamos. Mas
como é bom viver em harmonia, a questão foi congelada. António Costa
agradece – tem mais trunfos para travar os sindicatos, o Bloco e o PCP. E
o país fica à espera do dia em que Marcelo Rebelo de Sousa vai tirar o
fato dos festejos. Porque, às vezes, fica-se com a ideia de que o
inquilino de Belém é Sampaio da Nóvoa. Não é?
IN "PÚBLICO"
09/06/16
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