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IN "AÇORIANO ORIENTAL"
28/03/16
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Ainda "ideologias"
A crónica desta semana estava traçada. “Ideologias” era o título.
E o tema era fácil na afirmação de que o peso que alguns concedem à
ideologia distorce completamente a realidade dos factos, através de
interpretações feitas “à medida”, intelectualmente desonestas e servindo
interesses dissimulados – o que é praticado com uma exímia perícia
pelas nossas esquerdas.
A argumentação era ainda mais fácil e nem sequer precisava de
recorrer ao longo e variado historial atestador da verdade confirmada e
cujos protagonistas pretendem negar. Bastava mesmo invocar o último
episódio de ideologia aguda que a crise política brasileira
proporcionou: BE e PCP consideram que o alegado combate à corrupção no
Brasil é afinal um golpe de Estado!
Não importa que esta seja a posição
do PT brasileiro, parte implicada na teia de corrupção, e que a nossa
esquerda papagueia; não importa a independência do poder judicial como
baluarte da democracia em todo o Estado de direito. Afinal, é a esquerda
que está sob escrutínio judicial por indícios de corrupção. Ora, como
só a direita é corrupta trata-se afinal de um “golpe de estado”; e como
só a direita é culpada antes de qualquer deliberação judicial, trata-se
de um abuso de poder de investigação legal. A esquerda é sempre
moralmente pura pelo que dispensa qualquer escrutínio legal. A nomeação
de Lula para o Governo não é mesmo a mais flagrante admissão de culpa e
de estratagema de fugir à justiça, e é mesmo um acto de abnegação para
salvar a pátria… Os óculos ideológicos deturpam a realidade – haveria de
concluir…
Mas o despertar violento de 22 de Março, com os atentados em
Bruxelas, fez-me esquecer os meandros mesquinhos do estrabismo
ideológico… Mais uma carnificina terrorista! E esta crescente repetição
da barbárie dos designados jihadistas não nos pode permitir que a
comecemos a admitir como inevitável ou que a comecemos a encarar com
indiferença, mesmo que se trate de um distanciamento artificial ditado
por mecanismos de autodefesa. A indignação, o repúdio têm de ser hoje
tão veementes e categóricos como o foram da primeira vez que o
terrorismo islâmico evidenciou a sua estratégia de poder, muito simples,
nada sofisticada: matar e matar o maior número possível de pessoas. De
“pessoas”?! Não, apenas de “infiéis” que, nos seus padrões, não se
qualificam como pessoas…
Vem-me à memória a obra de Primo Levi Se isto é um Homem (1947).
Trata-se de um testemunho e de uma reflexão sobre a sua experiência de
um judeu italiano num campo de concentração nazi, mas é de facto uma
obra intemporal em muitos dos pensamentos que nos transmite e certamente
na afirmação de que o homem é a única espécie animal que desclassifica
alguns dos seus como iguais. O cão reconhece o outro cão; o gato
reconhece o outro gato; mas o homem nem sempre reconhece o outro homem
como homem…! E só neste total e absoluto esvaziamento do outro, na
supressão completa e radical da identidade do outro, na eliminação tão
poderosa como déspota da sua humanidade, se pode explicar a eliminação
tão devastadora quanto arbitrária da sua vida.
Na fila do check-in aquele casal trocava carinhos gozando
antecipadamente as férias programadas para esta Páscoa, o senhor em
frente estava impaciente por apanhar o voo de regresso a casa, a
funcionária atendia os clientes diligentemente na sua primeira semana de
trabalho; na carruagem de metro, aquela rapariga lia um romance a
caminho da faculdade, a mãe projectava com o filho a decoração dos ovos
de Páscoa, uma senhora idosa acabara de agradecer o assento que um jovem
lhe havia cedido. Terá sido assim…? Não sei. Não interessa. Podem ter
sido outros os episódios da vida quotidiana das pessoas que ali estavam
naquela ocasião, e podíamos ter sido nós também… Não são os pormenores
do momento que importam. Importa apenas que alguém, uma pessoa que
reconhecemos como tal, naquele local naquela hora, não reconheceu os
outros como pessoas. Seriam talvez pinos num jogo de bowling. Importava
apenas pontuar o máximo possível, derrubar o maior número possível de
pinos, de umas talvez aparências de pessoas, de infiéis.
Entretanto apercebi-me que continuava a pensar na cegueira das
ideologias…, não porque as duas situações invocadas sejam, mesmo que
remotamente, comparáveis. Não o são em vertente alguma. Só subsiste a
distorção, ora prejudicial, ora trágica, do real como denominador comum
das ideologias.
Professora Catedrática de Ética na Universidade dos Açores
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
28/03/16
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