TANTO PARA JULGAR
COMO
AJUIZAR
ATÉ ONDE PODE IR UM JUÍZ?
“Censuro-a!” Foi assim que a juíza Joana Ferrer se dirigiu a
Bárbara Guimarães, alegada vítima de violência doméstica. E
pode? O estatuto dos magistrados admite pena disciplinar para o juiz
que “causar perturbação no exercício das funções”. O
Expresso foi ouvir vários magistrados e responsáveis de associações
de apoio a vítimas
Até que ponto um juiz pode mostrar o que pensa sobre o caso que
está a julgar? A juíza Joana Ferrer cometeu alguma falta
disciplinar quando tratou a apresentadora Barbara Guimarães por
“Bárbara” e o ex-marido dela, que está a ser julgado por
violência doméstica, por “professor”? Ou quando disse à
queixosa que a censurava pelo facto de ter apresentado queixa tão
tarde e até ter mostrado que dá pouca credibilidade às queixas:
“Parece que o Professor Carrilho foi um homem, até ao nascimento
da Carlota [a segunda filha do casal], e depois passou a ser um
monstro. O ser humano não muda assim”, disse a juíza. O senso
comum diz que, no mínimo, a juíza pisou o risco.
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O estatuto dos magistrados não prevê em concreto qual é a forma
como os juízes devem tratar os vários intervenientes nos processos,
mas admite uma pena disciplinar para o juiz que “causar perturbação
no exercício das funções”.
As declarações da magistrada Joana Ferrer podem, por isso, levar
a um processo disciplinar. Por enquanto, o Conselho Superior da
Magistratura não vai averiguar as palavras da juíza: “Não foi
feita qualquer participação pelos advogados do processo e o
conselho ainda não decidiu nada sobre o assunto”, explica uma
fonte oficial. O coletivo feminista Maria Capaz escreveu uma carta
aberta a criticar as declarações da juíza. O documento será
entregue, em mão, no conselho, o que poderá levar à abertura de um
inquérito disciplinar.
A juíza tratou sempre Manuel Maria Carrilho pelo título
académico
Sem querer falar deste caso em concreto, Fernanda Palma,
professora e ex-juíza do Tribunal Constitucional, admite que “os
juízes não são robôs, exprimem a sua mundividência, e isso é a
natureza das coisas”. Contudo, “têm de ter contenção, porque
quem acusa ou quem julga está sempre sob suspeita”, e “o juiz
está ali para julgar - e não para emitir opiniões”.
Maria José Costeira, presidente do sindicato dos juízes, não
quer pronunciar-se e, por enquanto, a única reação é da
associação das mulheres juristas, que mostrou “preocupação”
pela “persistência de pré-juízos desconformes com o legalmente
estipulado”. Esta associação é presidida por uma juíza
desembargadora, Teresa Féria.
Bárbara Guimarães não reagiu às declarações da juíza
O advogado Pedro Reis, representante de Barbara Guimarães, também
não quer falar: “O que tiver a dizer, digo-o no processo”. E
Paulo Sá e Cunha, advogado de Manuel Maria Carrilho, diz que não
fala “sobre casos em julgamento” e lamenta “que isso não seja
observado por todos os juízes”. Qualquer um destes advogados pode
pedir o afastamento da juíza, o que levaria ao recomeço do
julgamento.
Falta formação
Da próxima vez que uma mulher pensar em fazer queixa hesitará em
fazê-lo, ao pensar nas palavras da juíza Joana Ferrer? É difícil
ter uma resposta conclusiva. As associações que trabalham com
vítimas de violência doméstica temem as repercussões, mas apontam
o foco para a formação. Juízes, procuradores e técnicos deviam
ter formação específica.
“A forma como as vítimas devem ser tratadas está mais do que
consignada. Devem-se evitar os juízos de valor, para evitar
fenómenos de revitimização secundária, deve-se mostrar
compreensão e estabelecer laços de proximidade”, diz Daniel
Cotrim, da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima
(APAV). O procedimento descrito não é, no entanto, o que acontece
sempre, mas o “vai acontecendo”. Faz falta formação
uniformizada e por todo o país. “Não se sabe quantos juízes
fazem formação, quem são esses juízes, que formação fizeram,
qual o número de horas”, acusa Margarida Medina Martins,
presidente da Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV).
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Cada caso é um caso, cada juiz um juiz. Independentemente do
género. “Não acredito que as mulheres em situações de poder
sejam mais duras com outras mulheres. Não penso que seja uma questão
de género”, defende Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da
Justiça. Uma destacada magistrada do Ministério Público, que não
quis ser identificada, considera que, por vezes, quem julga obedece
aos seus padrões culturais. “Não tem a ver com o género, há sim
uma questão cultural. Por exemplo, nos casos de condução sob
efeito do álcool, é socialmente mais aceite que os homens sejam
mais infratores do que as mulheres. Isso vem da sociedade.”
O facto de Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho serem
figuras públicas poderia servir de pretexto para o caso ser julgado
de forma exemplar. A AMCV vê este exemplo como um mau sinal e de que
ainda há um longo caminho a percorrer no tratamento dos casos de
violência doméstica. “O maior trabalho de como se deve proceder
nestes casos tem sido concentrado em Lisboa, por isso é preocupante
que se atue assim”, diz Margarida Medina Martins, presidente da
mesma associação.
TEXTO Carolina Reis e Rui Gustavo
IN "EXPRESSO"
16/02/16
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