22/12/2015

VALTER HUGO MÃE

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Desabrigo

Paradoxalmente, a era da comunicação, da propagação ao infinito da notícia, é boicotada pela sua própria abundância e voracidade. Como diria Eduardo Lourenço, o esplendor do caos, como aprendemos a cada passo, a limitação humana perante o esplendor e a vitória eminente do caos como o grotesco do costume. A verdade é que não consumimos mais do que um nico de cada história. Lemos parangonas e vemos fotografias ou vídeos até 30 segundos. Somos apenas o imediato das coisas. A demasia não é para cidadãos comuns. Apenas os heróis fazem da demasia uma normalidade.

O jornalismo precioso é aquele que está muito para lá da boutade sedutora. O jornalista precioso é um pesquisador permanente, aturado, um que comparece no texto como alguém que não esquece, um detentor da memória para encontrar, tanto quanto possível, o sentido profundo e a ironia de cada versão do presente.

A facilitação dos meios, no entanto, parece induzir o público a uma simplificação que reduz insuportavelmente os assuntos e os toma como alaridos momentâneos e não como construções responsáveis. Não sei o que pode vir de uma sociedade que se demite de uma melhor informação em prol de uma espécie de entretenimento aparentado com o ser-se informado. Estaremos, como colectivo, numa realidade perigosamente superficial, desmemoriada, sem referências, uma débil ou nenhuma identidade.

A magnífica virtualização dos suportes de comunicação pode ser tão absoluta na democratização dos conteúdos quanto fatal. A frenética competição online, onde o público inteiro se tornou também emissor, sem ratificação por terceiros nem mesmo lúcida consciência da liberdade de expressão, acaba por criar uma urgência sensacionalista, onde o clique inicial é tudo quanto se pretende. Na verdade, são cada vez mais as notícias sem conteúdo com que nos seduzem. Títulos que servem de isco para uma visualização contabilizada para impressão de patrocinadores e anunciantes. Os jornais do tempo da Internet arriscam-se a ser frentes de casa para espectáculo nenhum ou, de facto, um nico de espectáculo.

Já todos entendemos que a facilidade com que se debita um texto imenso na Internet é proporcional à dificuldade de lhe granjear leitores. O cidadão comum não se empenhará mais do que brevíssimos minutos, talvez até apenas segundos, na percepção do que parece estar em causa. Por algum motivo, ainda não conferimos à informação disponibilizada na Internet a validade suficiente para nos convencer ao empenho e, pior, o nosso mecanismo de memória fragiliza-se dramaticamente nos conteúdos apreendidos no formato virtual. Descartamos o que nos é apresentado numa lógica descartável. A corrida para o espanto seguinte não se compadece com a preservação de nada.

A nossa imprensa está a estreitar-se. Fico a pensar que estreitamos o pensamento, estreitamos o país. Recebemos cada vez mais as grandes matérias em traduções do que se pesquisa em outras latitudes, a dimensão portuguesa, ou o modo como Portugal vê o mundo, caminha tragicamente para um circuito que se fecha num universo mais e mais académico. Talvez o país se torne algo cada vez mais teórico, uma questão progressivamente do foro da discussão filosófica e menos aferível no quotidiano de cada um. Subitamente, vivemos territorializados, medidos como consumidores e pagadores de impostos, mas não como um colectivo detentor de uma qualquer identidade.

Viver assim é, de certo modo, estar ao desabrigo. Perigando as forças e mantendo ao nível da sobrevivência os objectivos. O problema é que a humanidade começa um pouquinho depois da fome. Até à fome somos bichos como outros quaisquer.

IN "PÚBLICO"
20/12/15

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