Desabrigo
Paradoxalmente, a era da comunicação, da propagação ao infinito da
notícia, é boicotada pela sua própria abundância e voracidade. Como
diria Eduardo Lourenço, o esplendor do caos, como aprendemos a cada
passo, a limitação humana perante o esplendor e a vitória eminente do
caos como o grotesco do costume. A verdade é que não consumimos mais do
que um nico de cada história. Lemos parangonas e vemos fotografias ou
vídeos até 30 segundos. Somos apenas o imediato das coisas. A demasia
não é para cidadãos comuns. Apenas os heróis fazem da demasia uma
normalidade.
O jornalismo precioso é aquele que está muito para lá da boutade sedutora.
O jornalista precioso é um pesquisador permanente, aturado, um que
comparece no texto como alguém que não esquece, um detentor da memória
para encontrar, tanto quanto possível, o sentido profundo e a ironia de
cada versão do presente.
A facilitação dos meios, no entanto,
parece induzir o público a uma simplificação que reduz insuportavelmente
os assuntos e os toma como alaridos momentâneos e não como construções
responsáveis. Não sei o que pode vir de uma sociedade que se demite de
uma melhor informação em prol de uma espécie de entretenimento
aparentado com o ser-se informado. Estaremos, como colectivo, numa
realidade perigosamente superficial, desmemoriada, sem referências, uma
débil ou nenhuma identidade.
A magnífica virtualização dos
suportes de comunicação pode ser tão absoluta na democratização dos
conteúdos quanto fatal. A frenética competição online, onde o
público inteiro se tornou também emissor, sem ratificação por terceiros
nem mesmo lúcida consciência da liberdade de expressão, acaba por criar
uma urgência sensacionalista, onde o clique inicial é tudo quanto se
pretende. Na verdade, são cada vez mais as notícias sem conteúdo com que
nos seduzem. Títulos que servem de isco para uma visualização
contabilizada para impressão de patrocinadores e anunciantes. Os jornais
do tempo da Internet arriscam-se a ser frentes de casa para espectáculo
nenhum ou, de facto, um nico de espectáculo.
Já todos entendemos
que a facilidade com que se debita um texto imenso na Internet é
proporcional à dificuldade de lhe granjear leitores. O cidadão comum não
se empenhará mais do que brevíssimos minutos, talvez até apenas
segundos, na percepção do que parece estar em causa. Por algum motivo,
ainda não conferimos à informação disponibilizada na Internet a validade
suficiente para nos convencer ao empenho e, pior, o nosso mecanismo de
memória fragiliza-se dramaticamente nos conteúdos apreendidos no formato
virtual. Descartamos o que nos é apresentado numa lógica descartável. A
corrida para o espanto seguinte não se compadece com a preservação de
nada.
A nossa imprensa está a estreitar-se. Fico a pensar que
estreitamos o pensamento, estreitamos o país. Recebemos cada vez mais as
grandes matérias em traduções do que se pesquisa em outras latitudes, a
dimensão portuguesa, ou o modo como Portugal vê o mundo, caminha
tragicamente para um circuito que se fecha num universo mais e mais
académico. Talvez o país se torne algo cada vez mais teórico, uma
questão progressivamente do foro da discussão filosófica e menos
aferível no quotidiano de cada um. Subitamente, vivemos
territorializados, medidos como consumidores e pagadores de impostos,
mas não como um colectivo detentor de uma qualquer identidade.
Viver
assim é, de certo modo, estar ao desabrigo. Perigando as forças e
mantendo ao nível da sobrevivência os objectivos. O problema é que a
humanidade começa um pouquinho depois da fome. Até à fome somos bichos
como outros quaisquer.
IN "PÚBLICO"
20/12/15
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