Tão bonzinhos que eles são
Doação à caridade soa bem melhor do que veículo de investimento, é certo. Mas há muito mais por trás da Chan Zuckerberg Initiative. Desde logo, uma maneira de estar na vida
Esta semana, a notícia fez primeiras páginas um pouco por todo o lado.
Mark Zuckerberg e a sua mulher Priscilla Chan anunciaram no Facebook,
onde mais poderia ser, que iam doar 99% das ações da empresa durante as
suas vidas, para se “juntarem a muitos outros que se dedicam a melhorar
este mundo para a próxima geração”. O anúncio da Chan Zuckerberg
Initiative, feito numa afetiva e extensa carta à filha, despertou um
emocionado coro de ovações públicas. Os amigos Melinda e Bill Gates,
Shakira, Sheryl Sandberg, Richard Branson, Martha Stewart, todos
comentaram o post parabenizando o casal e a sua bonita iniciativa. Nos
media, a aclamação foi também generalizada: ah, Zuckerberg, tão novo e
tão generoso! “Voto filantrópico de Mark Zuckerberg estabelece um novo
standard”, escreve a "Bloomberg"; “Mark Zuckerberg e Priscilla Chan vão
dar 99% das ações à caridade”, anuncia o "Wall Street Journal";
“Zuckerberg e Chan vão doar quase todas as suas ações”, diz a "Time".
O
que se esqueceram de dizer foi que esta iniciativa de Zuckerberg tem
também inúmeros benefícios fiscais. Caridade soa maravilhosamente bem,
mas o que Zuckerberg criou, bem vistas as coisas, foi um veículo de
investimento. Desde logo, a forma escolhida não foi despropositada. A
Chan Zuckerberg Initiative é uma LLC, ou seja, uma companhia de
responsabilidade limitada. Ele não criou uma fundação de caridade, com
estatuto não lucrativo (conhecida nos EUA por organização 501 ( c) (3)),
que tem de obedecer a uma série de regras que limitam o campo de ação e
obrigam a doar percentagens específicas do seu património anualmente.
As
LLC permitem fazer muito mais do que meras doações: podem investir em
empresas, fazer parcerias e criar negócios, fazer lobby e investir em
causas políticas. Basicamente, com este veículo pode fazer tudo e mais
alguma coisa com o seu dinheiro. “O Senhor Zuckerberg foi retratado de
forma reluzente, por ter, na essência, transferido dinheiro de um bolso
para outro”, escreveu ontem o analista Jesse Eisinger num texto de
opinião publicado no "New York Times".
E, de um bolso para o outro, há uma pequena enorme diferença: muito
provavelmente, Zuckerberg nunca vai pagar impostos do valor do
património que colocou na LLC. A questão que se coloca, e que numa
segunda leva depois da euforia inicial começou a ser debatida nos
Estados Unidos (já comentada por Zuckerberg num novo post
de hoje), é que um dos homens mais ricos do planeta não vai contribuir
para ajudar a pagar as despesas do seu país. Ninguém duvida das boas
intenções de Zuckerberg e Chan e da vontade real em ajudarem projetos
beneméritos e melhorar a vida das crianças, só se questiona que não se
comprometam, como os outros norte-americanos, em ajudar a suportar o
estado e contribuir para o bem comum. No limite, se todos os
multimilionários optassem por este tipo de veículos, a percentagem de
impostos angariada pelo estado – e que pagam as despesas públicas –,
reduzia-se significativamente. Thomas Piketty, autor de "O capital no
século 21" e que defende um vagamente utópico imposto global sobre a
riqueza, não foi de meias palavras: “tudo isto é uma grande piada”.
Mas
há outro ponto interessante nesta opção do criador do Facebook.
Inerente a esta posição está uma ideia, bem ao estilo de Zuckerberg (já
aqui falei do seu ambicioso plano para conquistar o mundo),
que é mais ou menos isto: “eu faço melhor do que os políticos, e por
isso em vez de lhes dar o meu dinheiro para eles gerirem e aplicarem,
vou fazer eu isso”. Foi esta forma de estar que o fez, aliás, fundar o
império que tem hoje. Na primeira entrevista em que falou da origem do
Facebook, deu uma explicação simples para ter saltado por cima do plano
da Universidade de Harvard para ter uma rede social no campus: "Eu
consigo fazer melhor do que eles".
Ninguém duvida da capacidade
de Zuckerberg em fazer dinheiro, mas é lícito duvidar da sua capacidade
em discernir quais os projetos que são efetivamente merecedores e onde é
que esse dinheiro pode fazer a diferença. O que, na prática, não nos
leva a lado nenhum, porque o dinheiro é dele e pode, de facto, fazer o
que quiser com ele.
Os super-ricos compram adulação geral por
doações que minimizam os seus impostos, nada de novo. A isto chama-se
optimização fiscal, que cada um faz à escala do seu bolso, e o de
Zuckerberg é estupidamente grande. O que pensar de tudo isto? Entre um
multimilionário bonzinho e um capitalista sem vergonha que só quer fugir
aos impostos, algures no meio estará a razão.
IN "VISÃO"
04/12/15
.
Sem comentários:
Enviar um comentário