HOJE NO
"OBSERVADOR"
Portugueses saem de Angola:
a salvação já não é aqui
No colégio de Sofia metade dos alunos portugueses saiu. As empresas não
têm como pagar os ordenados e até no Facebook se tentam trocar kwanzas
por dólares ou euros. Quem não pode mais, volta.
Sofia Ferreira está em Angola há quase cinco anos. Vive em Viana, a
cerca de 20 quilómetros de Luanda, onde é educadora num colégio que a
própria criou. “Quando abri o colégio a maioria dos alunos eram
portugueses. Hoje, a maioria são angolanos. O nosso ano letivo reabre,
tal como em Portugal, em setembro. Mantivemos muitos dos alunos
portugueses inscritos até aí, mas de setembro até agora muitos deles foram embora.”
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Muitos dos pais destes alunos trabalhavam na construção civil, a maioria
deles em construtoras portuguesas, como a Somage, Mota-Engil, Teixeira
Duarte ou Soares da Costa, garante Sofia. “Mas como as obras
públicas do Estado angolano pararam, as empresas tiveram que dispensar
trabalhadores, outros têm salários em atraso. E vão regressando.”
Mesmo os que continuam empregados também partem. “A maior parte dos
trabalhadores portugueses em Angola e que trabalharam, por exemplo, em
empresas portuguesas e de construção civil, tinham o ordenado depositado
diretamente em Portugal, em euros, e as ajudas de custo, na
alimentação, no alojamento, eram pagas em kwanzas em Angola. Agora é
tudo pago em kwanzas. E por norma a transferências demora uns dois meses
a ser feita. Às vezes mais, dependendo dos bancos. E essa espera não é
compensadora.
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Houve mais mudanças. Muitos dos portugueses que passaram a receber em
kwanzas trocavam-nos por dólares no banco. E viajavam com eles de cada
vez que vinham (ou que tivessem quem viesse) a Portugal. “Sim, era possível viajar com dólares. Até 10 mil por pessoa.
Era necessário ir ao banco, apresentar o bilhete de viagem, e dizer que
se queria comprar dólares para viajar. Antes, por lei, tínhamos direito
a 10 mil dólares por adulto e mais 2 mil e 500 por criança. Mas há mais
de um ano que não viajamos com dólares. Não há nos bancos”, explica
Sofia.
Comprar dólares na rua…
Mas havia. Nos bancos e nas ruas. “Em Angola, quando cá cheguei há
mais de quatro anos, havia tantos dólares quanto kwanzas a circular. Por
exemplo, se eu pagasse em kwanzas uma despesa, podia receber o troco em
dólares.” Agora, só nos kinguilas.
O que são os kinguilas? “Os kinguilas são mulheres. Sobretudo mulheres. Parece que estão na rua a passear mas estão a vender dólares.
São quase como os traficantes de droga. Quem quer, sabe sempre em que
rua encontrá-los. E se pararmos os carros, vão logo a correr perguntar
se queremos dólares. Por norma, o câmbio é mais do dobro do que seria
nos bancos. E há portugueses que precisam mesmo do dinheiro e pagam.
Mais vale pouco que nada.”
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No fundo, 0s kinguilas representam o mercado paralelo de câmbio, mas é
uma atividade aceite no país. “Aquelas pessoas estão na rua, não se
escondem da polícia. É um mercado que é tolerado. Com a escassez
de dólares, as pessoas recorreram ao mercado informal. É como o arroz.
Se há escassez de arroz, as pessoas vão comprá-lo ao mercado informal e
vão pagar o que os vendedores pedirem por ele.” Carlos Rosado
de Carvalho é jornalista económico em Luanda. E recorda que o negócio
dos kinguilas esteve quase a desaparecer, mas regressou com a saída do
dólar de circulação no país. “Quando a taxa de câmbio era boa não havia
kinguilas”, salienta.
O problema é que agora, mesmo na rua, os dólares escasseiam e são muito caros. Se nos bancos 150 kwanzas compravam um dólar, na rua são precisos 270 kwanzas para o mesmo valor.
O segundo problema é que o kwanza é “dinheiro de monopólio”, como
classificou ao Observador um português que trabalha em Luanda. Os
kwanzas só servem para usar em Angola, não se podem tirar de lá e não
valem em mais lado nenhum do mundo. “O que acontece é que as
pessoas que têm toda a sua vida aqui têm poucos problemas, pagam tudo em
kwanzas. Pior é para quem tem despesas para pagar em Portugal, porque
não recebe nem dólares, nem euros“, sublinha. E para quem está
nesta situação, há duas hipóteses: ou espera que os bancos façam o
câmbio, e isso está a demorar entre 90 a 120 dias — enquanto há dólares
para isso — ou troca os kwanzas na rua e basicamente duplica o valor
das suas despesas, uma vez que precisa de duas vezes quase mais kwanzas
para comprar o mesmo valor de dólares, tal como fazia nos bancos.
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E não são apenas os trabalhadores que tentam arranjar dólares a alto preço. Os próprios empresários já recorrem ao mercado paralelo para conseguirem fazer face às despesas que têm.
Porque também eles se vêem entre a espada e a parede, uma vez que
muitos trabalhadores portugueses têm contratos que prevêem que a
maior parte do salário seja transferida diretamente para Portugal.
Então, novamente, das duas uma: ou os donos das empresas esperam pelo
tempo que os bancos demoram a efetuar as transferências (os que ainda as
fazem) — provocando atrasos nos salários que vão dos 90 aos 120 dias — ou tentam trocar os kwanzas no mercado paralelo, e basicamente um trabalhador passa a custar-lhes o dobro.
… ou no facebook
Mas os kinguilas, com a crise do petróleo e a falta de divisas, não
ressurgiram só nas ruas. Surgiram onde não tinham surgido antes: nas
redes sociais. Mais concretamente no Facebook. Há dólares, euros – e tudo se troca, em Lisboa ou Luanda, por kwanzas.
Estão ali, em grupos privados e à distância de uma mensagem, os
negociantes e os que procuram, desesperadamente, quem negoceie consigo. E
negoceiam-se desde centenas a milhares de euros e dólares. Às claras.
80 mil com ordenados em atraso?
Angola foi, por anos a fio e durante a última década, um paraíso para as
empresas portuguesas investirem e para muitos portugueses emigrarem em
troca de salários que nunca iriam conseguir obter em Portugal. Foi uma
tempestade perfeita: a crise em Portugal convidava a sair; o dinheiro
que por cá escasseava, na petroeconomia angolana havia a rodos, e o
Estado angolano, com a economia em expansão, queria gastá-lo, queria
crescer. E crescer envolvia construir tudo o que anos e anos de Guerra
Civil destruíram ou impediram que se construísse.
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As construtoras civis disseram presente, tinham a mão-de-obra
qualificada, tinham os meios e o saber, e avançaram para Angola,
rapidamente e em força. Mas como qualquer petroeconomia, quando a
cotação do petróleo nos mercados cai, tudo se desmorona em seu redor.
Foi o que aconteceu nos últimos longos meses. As obras que deviam ter arrancado, não arrancaram. As que se deviam ter concluído, não se concluíram e arrastam-se ad aeternum, a conta-gotas. Mas o pior são os ordenados que não aparecem nas contas bancárias em Portugal.
O Sindicato da Construção Civil em Portugal fala em mais de
80 mil trabalhadores portugueses, só neste setor, com ordenados em
atraso. O número representa quase 40% de todos os trabalhadores
nacionais da construção civil em Angola. O sindicato culpa a
crise petrolífera. Recorde-se que o barril de crude vale hoje 47 dólares
(44 euros) quando no ano passado, por altura da elaboração do orçamento
do Estado de Angola para 2015, estava a valer 81 dólares.
Albano
Ribeiro, o presidente do Sindicato, garante que “há situações muito,
muito complicadas” nesta altura e fala de “dois a seis meses” de
salários em atraso. Em muitos dos casos, os trabalhadores,
afirma o sindicalista, “nem têm dinheiro para regressar a Portugal de
avião”. E outros há que “se vierem a casa pelo Natal, como vêm quase
sempre, não voltam a Angola de certeza”. Albano Ribeiro terá
sido contactado, segundo diz, por muitos destes trabalhadores, que
pediram ajuda ao Sindicato, mas ainda não se reuniu com as empresas, com
quem já terá solicitado o agendamento de reuniões.
Governo português acha 80 mil demais
Fonte governamental contactada pelo Observador garante que nem
a Embaixada Portuguesa em Angola nem o Ministério dos Negócios
Estrangeiros ou a Secretaria de Estado das Comunidades receberam
qualquer pedido de ajuda. “Mas o Governo tem procurado saber,
através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, se são ou não 80 mil os
portugueses em dificuldades e como é que se chegou a esse número. Esse
número não nos parece ter fundamento”, refere a mesma fonte.
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A primeira responsabilidade, garante, é de quem emprega. “A
primeira responsabilidade, se há ordenados em atraso, é das empresas.
Os trabalhadores se têm um contrato de trabalho, têm que valer-se dele.
É uma questão jurídica. Se tiverem dupla nacionalidade, como há muitos
que têm, é a lei angolana que prevalece. Se são portugueses e as
empresas são portuguesas, é a lei portuguesa. Mas não é uma competência
do Governo. O que podemos é fazer diligências consulares e
diplomáticas. Não temos poderes nas entidades empregadores. Nem nos
trabalhadores.”
O presidente da Confederação Portuguesa da Construção e do
Imobiliário, Reis Campos, não desmente os números avançados pelo
Sindicato, mas garante que a crise no setor da Construção Civil não é
nova e que terá começado no primeiro trimestre do último ano. “Com
a descida do petróleo as autoridades angolanas disseram logo que isso
ia ter consequências. O que ninguém esperaria é que fossem consequências
tão duradouras.”
Reis Campos fala em “reajustamento”, no
caso das maiores construtoras, e de “regresso” no caso das “milhares”
de pequenas empresas que trabalham no setor. “As empresas que foram para
lá e sofreram logo o impacto da crise do petróleo, voltaram. Essas
decidiram logo voltar. Mas as outras, as que tinham obras em curso que
duram dois ou três anos, não voltaram. O que não há é nenhuma empresa que tenha o mesmo número de pessoas que tinha antes.”
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E os ordenados? Esse é outro problema. É que as empresas deixaram de
pagar em dólares e passaram a pagar ordenados somente em kwanzas. “Tudo
se complicou quando os trabalhadores não tiveram mais como converter os
kwanzas em dólares, quando este foi retirado de circulação nos bancos.
Muitos trabalhadores saem de Angola porque não lhes compensa fazer as
conversões nos mercados informais. Perdem muito, muito dinheiro. E as empresas também não conseguem converter kwanzas em dólares para si mesmas. Não há como pagar aos fornecedores fora de Angola em kwanzas.”
A fonte do governo garante que “há outro problema” e que, esse sim está mais que confirmado. “O de haver empresas portuguesas a operar em Angola que efetivamente não têm sido pagas pelo Estado angolano.
E, havendo essa dívida, elas não têm como pagar aos trabalhadores. Há
empresas nacionais com salários em atraso, como há empresas angolanas
com salários em atraso. E os empregados não conseguem receber nem retirar de lá o dinheiro. Não conseguem.”
Apesar de tudo, Reis Campos não acredita num regresso em massa das
empresas e dos trabalhadores a Portugal. Até porque a razão de estes
terem ido para Angola foi precisamente a crise portuguesa. “Não haverá
uma debandada das empresas. As empresas foram para lá com uma visão de
futuro, uma ótica de longo prazo e a maioria tem aguentado. Esperam que
isto dê uma volta. Nós não nos podemos esquecer que as empresas foram
para lá porque tinham problemas cá. O setor decresceu 43,8% nos últimos
cinco anos. E perdeu 36 mil empresas e 262 mil trabalhadores. O que as
empresas me dizem é que têm uma perspetiva positiva. As empresas
manifestam uma vontade de continuar. Têm confiança neste mercado. Acham
que é uma situação anómala, mas que é transitória. São empresas que estão há muitos anos em Angola.” Mas deixa um aviso: “Se estivermos numa situação destas muito tempo, que é desgastante todos os dias, podemos chegar a uma conclusão diferente.”
Por que deixou de haver dólares em Angola?
Por que deixou de haver dólares em Angola?
“Angola não comprava dinheiro diretamente à Reserva Federal
norte-americana. Os bancos angolanos não têm acesso ao Bank of America. O
que acontecia é que os americanos vendiam notas ao First Rand, um banco
sul-africano, que por ser vez as vendia aos bancos angolanos. E o Bank
of America informou o First Rand que não podia vender mais notas a
Angola. Angola importava cinco mil milhões de dólares anualmente desde
2011. Em 2014 foram quatro mil milhões. Havia mais dólares do que kwanzas em ciruculação. E havia quem se aproveitasse de tantos dólares em circulação para os comprar. Foi por isso que o Bank of America, com receio de ser multado pela Reserva Federal, fechou a torneira. Diz-se que muito do dinheiro que chegava a Angola era intercetado no Médio Oriente. E podia estar a financiar o terrorismo”, explica Carlos Rosado de Carvalho, jornalista de economia em Luanda.
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Esta interrupção no fornecimento de dólares é consequência de uma decisão da Reserva Federal dos Estados Unidos, que suspendeu
a venda de dólares a bancos sediados em Angola por considerar que havia
uma sistemática violação das regras de regulação do sector. Terão sido também detetadas práticas de branqueamento de capitais, envolvendo somas anuais de milhões de dólares.
Carlos Rosado de Carvalho prefere ser optimista e vê aqui uma chance
para “desdolarizar” a economia. “Não havia razão para importar tantos
dólares.” Mas mais do que de dólares, a economia angolana está
dependente de petróleo como de pão para a boca. “O petróleo, quando
estava a 100 dólares o barril, representava entre 70 a 80% das receitas
do Estado. Se cai para metade isso tem que ter consequências
gravíssimas, porque 95 por cento das exportações de Angola advêm do petróleo. Há uma petrodependência.
Mas isso não é uma doença. Se nós temos febre, tem que haver uma causa
para a febre. E a causa da febre é a falta de concorrência na economia
angolana. Não há diversificação.”
O jornalista aponta soluções.
Mas são soluções que demoram décadas, não meses. “A economia de Angola
depende no curto prazo da evolução do preço do petróleo. Se o petróleo não aumentar a economia não avança. No médio-longo prazo é preciso diversificar a economia para outros setores.
As políticas de diversificação que têm sido propostas não têm
resultado. Angola tem tudo: agricultura, agro-indústria, indústria,
minerais como o ferro e não só diamantes, e é tempo de os empresários
escolherem. O desafio de Angola é transformar o potencial em realidade.
Mas enquanto o preço do petróleo não aumentar as coisas não vão
melhorar.”
Carlos vê no regresso dos portugueses, não só da construção civil mas de
todas as áreas, não só um problema do petróleo, mas também da falta de
divisas. “Há pessoas que não têm que regressar. Pessoas que até têm
emprego. Mas estão a ganhar em kwanzas e não têm como transferir o
dinheiro para os países de origem. Os canais bancários não se fazem ou
são muito demorados. Mas têm a sua vida normal cá e podem ir ao mercado
informal comprar dólares. Mas indo ao mercado não lhes compensa estar em
Angola. No mercado informal estão a pagar o dobro do que pagariam no
banco. O kwanza não é uma moeda transferível. Nem para Portugal, nem para Espanha, nem para país nenhum.”
* A notícia explica muito bem como o cacique zé du explora bem os portugueses a par dos angolanos. Nem um ceguinho, exceptuando os empresários portugueses conluiados com o ditador, podia acreditar que daquele país pudesse vir alguma coisa de bom para os trabalhadores portugueses que para lá foram dar o litro, há seis anos que dizemos que Angola não é o "el dorado". Ai aguentam, aguentam!
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