Ética.
Do racionamento ao desperdício
Vale a pena ler integralmente o artigo de
Howard Brody no "New England Journal of Medicine", uma das mais
conceituadas revistas médicas do Mundo, publicado em maio de 2012, sobre
o tema em título.
A "ética do racionamento" baseia-se em duas
considerações: os recursos são escassos e o racionamento é ineludível,
sendo imperativo tomar decisões conformes.
A principal reserva
ética ao racionamento é a obrigação deontológica de não tratar doentes
de forma desigual, independentemente do custo e da sua posição social.
Segundo
Brody, a discussão ética deve ser recentrada, pois não é legítimo
aceitar o racionamento como inevitável sem primeiro eliminar a fraude, o
desperdício e o abuso dos recursos, a todos os níveis. Ora, calcula-se
que o desperdício nos EUA, apenas em saúde, represente 30% do orçamento
deste setor, qualquer coisa como 800 mil milhões de dólares por ano,
sendo o desperdício um dos principais fatores de aumento dos custos em
saúde.
Perante este cenário, o debate tem mesmo de se centrar na
ética do combate ao desperdício, uma componente essencial da ética
profissional. Esta necessidade deve ir longe e ser consequente,
nomeadamente quando um artigo publicado na JAMA Internal Medicine, em
outubro de 2015, evidencia que a Food and Drug Administration, a
entidade reguladora do medicamento do EUA, tem aprovado vários
medicamentos para o cancro que são caros, tóxicos e sem qualquer
benefício.
Os dois principais argumento éticos a favor do combate
ao desperdício são: 1) nenhum doente deve ser privado de cuidados de
saúde que lhe sejam úteis; 2) o recurso a testes e tratamentos
desnecessários podem provocar danos à saúde, remetendo-nos para o
conceito da prevenção quaternária, "primum non nocere", antes de tudo,
não fazer mal.
Por tudo isto, os Estados Unidos da América estão a
evoluir da ética do racionamento para a ética do combate ao
desperdício. Portugal deve seguir o exemplo.
No nosso país, o
combate à fraude e ao desperdício convoca-nos a todos e em todos os
setores. Alguma coisa foi feita nos últimos anos, mas insuficiente.
O
racionamento em saúde nunca será ético enquanto não se fizer a reforma
do Estado, prisioneira dos interesses políticos, e do Ministério da
Saúde, nomeadamente com a fusão das ineficientes e conflituantes ACSS e
ARS, que apenas se mantêm para garantir empregos para os boys, enquanto
não se apostar na educação para a saúde e na prevenção primária,
incluindo uma política fiscal saudável e inteligente, enquanto persistir
o nepotismo e os governos continuarem a adjudicar serviços e obras de
milhões de euros sem concurso, enquanto os nossos impostos continuarem a
desaparecer na voragem da má gestão bancária, enquanto houver economia
subterrânea, etc., etc.
Na verdade, sem ética na política nunca haverá ética no racionamento.
* Bastonário da Ordem dos Médicos
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
27/11/15
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