Regeneração da esquerda
Assistimos à decadência final de uma das
grandes inovações políticas do início do século. A chegada de Lula da
Silva à presidência brasileira em 2003 significou uma renovação para a
esquerda mundial. Não apenas o Partido dos Trabalhadores tomava o poder
numa das maiores democracias, mas abriu novas perspectivas numa das
regiões do planeta mais exigentes.
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Recusando
o populismo económico e irresponsabilidade financeira de três gerações:
Fidel Castro em Cuba, Hugo Chávez na Venezuela ou Evo Morales na
Bolívia, Lula seguiu o antecessor centrista Fernando Henrique Cardoso,
mas introduzindo programas sociais inteligentes, como a Bolsa Família. O
resultado foi não só um grande sucesso para o Brasil, mas para uma nova
esquerda sul-americana, combinando realismo económico com justiça
social.
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A novidade continuou a longa
renovação da esquerda com mais de cinco décadas. Ela está ao nível da
que o jugoslavo Josip Broz Tito e o checo Alexander Dubcek fizeram nos
anos 1960, o francês Georges Marchais e o italiano Enrico Berlinguer nos
anos 1970, o russo Mikhail Gorbachev e o chinês Deng Xiaoping nos anos
1980, o britânico Tony Blair e o americano Bill Clinton nos anos 1990.
Em todos estes casos a esquerda adaptou a doutrina e a prática às
realidades em intensa transformação, preservando o essencial da linha
sem perder presença activa nas mutações mundiais.
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O sucesso das várias tentativas foi muito
diverso, mas poucos suportaram uma degradação tão profunda e intensa
como agora o PT. Afligido desce cedo por profunda corrupção, o partido
sofreu em seguida por longa hesitação e grave incompetência na gestão
dos choques económicos, que resultou em intenso colapso, de onde
dificilmente recuperará incólume.
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Enquanto
o PT brasileiro declina, a regeneração da esquerda continua noutras
latitudes. É na Grécia que surge a experiência mais promissora dessa
área política, com o radical Syriza aceitando governar em terríveis
condições económicas e financeiras. Isso forçou uma transformação
homóloga à de Lula, trocando a retórica incendiária e ociosa por um
pragmatismo sensato. Ainda é cedo para determinar o resultado da
experiência mas dela, como de todas as mencionadas, sairá o futuro da
ideologia.
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Estes casos, e muitos outros
que poderiam ser citados, mostram como a esquerda tem revelado um
dinamismo intelectual e uma adaptabilidade política em condições muito
difíceis. A exigência advém de uma solidez intelectual que a direita,
por razões conceptuais, não tem. Pelo contrário, o óbice desse
adversário é a forte indefinição ideológica. Enquanto a esquerda se
descreve claramente pela doutrina - mesmo se em vários matizes,
jacobina, marxista, trotskista, maoista, cooperativista,
social-democrata, etc. -, a direita é caracterizada simplesmente como
tudo o resto. Por isso inclui grupos incompatíveis e até opostos, como
absolutistas, republicanos, conservadores e liberais. Só que a própria
solidez ideológica da esquerda cria todas as dificuldades de adaptação
que rodearam cada uma das regenerações, não apenas nas referidas destes
50 anos, mas ao longo de todo o último quarto de milénio.
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A
esquerda portuguesa, vinda de um passado idealista e extravagante,
mostrou desde 1974 um pragmatismo e adaptação que lhe tinha sempre
faltado. É verdade que temos, no PCP, o único partido relevante europeu
que mantém a pureza marxista--leninista. Por outro lado, ninguém o ouve
falar publicamente em ditadura do proletariado ou sociedade sem classes,
tendo tentado repetidamente há 40 anos seduzir os que considera
burgueses revisionistas do PS para alianças. Quanto ao BE e ao PS, a sua
simples existência é prova de cedência e compromisso. O Bloco, como o
nome indica, constitui uma agregação de maoistas, trotskistas,
ecologistas, esquerdistas e radicais que omitem as suas diferenças para
conseguir relevância. Igual variedade existe dentro do PS, desde uma
social-democracia semi-liberal a um marxismo pouco moderado.
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António
Costa ensaia agora mais uma regeneração, aceitando a antiga proposta do
PCP e até a alargando ao Bloco. Antes de o colocar na galeria dos
reformadores, onde Tsipras ainda espera aprovação para o lugar ao lado
de Lula, vale a pena considerar os contornos da proposta à luz das
anteriores renovações.
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O que
imediatamente salta à vista no possível acordo PS-PCP-BE é a ausência
não só de solidez doutrinal mas até de programa político. Tudo parece
resultar de mero oportunismo parlamentar, o que perspectiva uma
decadência ainda mais rápida do que a do PT brasileiro.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
11/11/15
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