Mulheres sem nome nem voz
A voz das refugiadas e a minha voz, todas as vozes dizem que Anan é o nosso futuro
A
pequena Anan tem sete anos. Não para quieta. Quando lhe digo que não
pode vir para o pé de mim, trepa o balcão e passa para o meu lado. Nunca
está com os pais, vejo-os poucas vezes. Passo por ela no corredor e
salta para o meu colo, dando-me um abraço tão forte, que não sou capaz
de a pôr no chão. Vai ter comigo para a levar à casa de banho e anda às
minhas cavalitas para todo o lado. Adora mexer-me no cabelo e pede-me
sempre que lhe faça uma trança igual à minha.
Penso
no seu futuro com um sorriso, acredito que vai ser ela uma mulher entre
as pioneiras da grande transformação já iniciada neste mundo da
desigualdade. Desejo que alcance todos os seus objetivos. Espero que
nunca deixe de ser desobediente. Eu também sou, à minha maneira. E não
passei, até hoje, por metade das mudanças repentinas de vida que ela, em
sete anos de história, já sofreu.
Às
primeiras horas do dia, apareceu-me no centro uma mãe síria com três
crianças, perdida e enfraquecida pela história, pela injustiça, pela
guerra e pelos milhares de quilómetros que percorreu nos últimos dias.
Não tive tempo de lhe conhecer o nome. O marido morreu, ela resolveu
partir sozinha e trazer os filhos para a paz. Percebi que foi
atravessando fronteiras em carros particulares, até que o último a
deixou na Bélgica. O condutor esperou que os passageiros saíssem do
carro e arrancou, com a bagagem e todo o dinheiro dos refugiados,
deixando esta mulher no meio da estrada, ferida e sem chão, sem teto,
sem norte. Levei as crianças ao médico e ela ficou numa sala,
resguardada da confusão, para se recompor. Tremia de frio e medo. Não
voltei a vê-la.
Na
sala de espera dos Médecins du Monde, à tarde, está uma senhora de
olhos negros, brilhantes, com um bonito lenço dourado a cobrir-lhe os
cabelos. Há de ter quarenta e poucos anos, espera por um filho de dez,
que está a ser visto pelo médico, e tem ao seu lado outro, da minha
geração. Vieram os três do Iraque.
"Fizemos
a mesma viagem que todos os que estão aqui", revela-me, "com a pequena
diferença de que, para mim, sendo mulher, foi mais doloroso correr e
trepar, passar por barreiras de arame farpado, andar à chuva e ao frio.
Não estou habituada a estas coisas. Foi muito doloroso. O mais pequenino
fez metade da viagem com febre e eu doente fiquei, só de o ver assim".
Por
ficarem para trás nos grandes grupos, a senhora e os filhos foram
várias vezes apanhados pela polícia e estiveram presos, por uma noite,
na Bulgária e na Sérvia. Mas a mulher sem nome sorri, tranquila, quando
conclui: "agora já cá estamos, já passou".
Tenho
muito pouco contacto com mulheres, neste centro de refugiados. Por
questões culturais, a sua vida social é anulada. Os homens é que tratam
das necessidades da família e são raras as que encontro uma segunda vez.
Comunicamos por olhares e sorrisos, aproximo-me sempre a pretexto de me
meter com os bebés, a quem faço festinhas na cabeça e digo uma das
poucas palavras que sei em árabe: habibi, meu querido. As mães agradecem com ternura e afastam-se rapidamente, sempre de olhos no chão.
Há
uns dias encontrei uma senhora a chorar, na casa de banho. Não pensei
muito e dei-lhe um abraço. Sorriu, surpreendida, e limpou logo as
lágrimas, respirando fundo. Não sei como se chama e também não a voltei a
ver.
Um
dia destes, estava na Cruz Vermelha e uma mãe explicou-me, por gestos,
que precisava muito de umas cuecas. Piscou-me o olho, à procura de
cumplicidade, mas eu, como ela só falava árabe, e tendo todo o cuidado
de dizer que precisava de roupa, de um modo geral, para não a
comprometer, pedi a um colega meu que lhe explicasse que tínhamos de ir
ao Hall Maximilian buscar o que ela queria.
Quando ele reproduziu em
árabe o que eu disse, a senhora ficou tão embaraçada que acabou por lhe
dizer que só queria tomar um duche. Continuava a piscar-me o olho,
enquanto se dirigia para a casa de banho. Peguei num papel e desenhei
rapidamente um mapa para lhe dar, na esperança de a encontrar mais tarde
e poder resolver-lhe o problema. Nunca voltou a aparecer.
Quando
tento interagir com as mães de família que visitam o centro, peço
sempre a amigos que sirvam de intérprete e é interessante ver como eles
se dirigem, imediatamente, aos maridos para colocar as minhas questões.
"Posso entrevistar a tua mulher?", perguntam primeiro. Infelizmente, são
muitas vezes os homens quem acaba por responder. Custa-me esta condição
subalterna em que as encontro, mas não deixo de fazer a minha parte,
sem julgar nem me cansar, grão a grão vai-se mudando qualquer coisa. Que
fique dito e escrito, que sou tão defensora dos direitos das mulheres,
como da tolerância e do respeito pela diferença. Acredito que, com tempo
e paciência, podemos mudar as ideias, educando-nos uns aos outros.
Também
faz parte do meu trabalho dar o exemplo. Mostrar como, "apesar de" ser
mulher, me comporto, ensinar a todos com que me relaciono que temos de
nos aceitar uns aos outros como iguais, independentemente das nossas
diferenças.
Com
o passar do tempo, fiz amigos e constituí aqui uma família provisória,
uma necessidade também por estar longe da minha. A verdade é que, muitas
vezes, sinto que estou a receber mais do que aquilo que dou. Tenho
aprendido tantas coisas sobre a vida, o mundo e as pessoas, sobre a
comunicação e as relações humanas, que devo um grande agradecimento aos
que agora fazem parte dos meus dias.
Os
rapazes da minha idade, os meus companheiros, ajudantes e tradutores
incansáveis, não aumentaram só o seu nível de inglês e francês,
aprenderam também como é ser rapaz e rapariga neste novo mundo. Agora
também eles podem ensinar isso àqueles que chegam.
Nada
pode ser exigido à força, à pressa, repito-me, é preciso tempo para a
adaptação, para que a integração aconteça, no verdadeiro sentido do
termo. Ponho-me na pele deles e parto para a reflexão mais básica: e se
fosse ao contrário? Se eu tivesse de fugir para um dos seus países, com
os costumes da minha terra e o estilo de vida que adquiri ao longo da
minha história? É certo que iria ser difícil adaptar-me, ninguém me
perguntaria se eu era ou não a favor disto e daquilo, e isso, nestas
circunstâncias , pouco interessa.
Se
queremos ensinar a respeitar, defendo que devemos respeitar primeiro.
Faço isto e o resultado tem sido incrível. Sorrio, converso, desafio,
interpelo, tomo a iniciativa... E já não encontro os olhares com que fui
recebida nos primeiros dias, de desconfiança e fascínio, de algum
desprezo e curiosidade, até de provocação. Agora recebo sorrisos e as
minhas vontades são respeitadas. Somos todos feitos do mesmo, raparigas,
mulheres, rapazes e homens. Os recém-chegados aprendem isso mais
rapidamente, com os que já lá estavam.
É isto o que penso e que
vejo, apresento-a na humildade de quem sente, sem estudar a teoria. A
História escreve-se devagar, com letrinhas de criança como as que Anan
desenha no meu caderno. Mas escreve-se, sempre. E a minha escrita
continua, talvez para daqui a uns dias ter mais histórias de mulheres
guerreiras. Ainda não desisti de lhes dar um nome e uma voz.
IN "VISÃO"
05/11/15
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