Mãe
As mães ficam sempre de pé, como as árvores, cheias de raízes pelo mundo fora e brotam ramos, flores e frutos: a certa altura as mães são imortais.
É o que eu sou.
.
.
É a característica que melhor me define.
.
.
Sou
feita de outras matérias que não apenas a matéria comum a todas as
mães. Até porque não há uma mãe igual: as mães são todas diferentes, são
únicas, seres incríveis e irrepetíveis.
.
.
Sei fazer muitas outras
coisas para além de ser mãe. Ser mãe nem é talvez a minha melhor
característica; outros atributos tenho que domino com maior mestria e à
vontade (as mães estão sempre em sobressalto e escrutínio público e
privado; não há mãe nenhuma que diga de si própria que é a melhor do
mundo).
Ser mãe de quatro sublimes criaturas não é um talento com
o qual fui abençoada à nascença, se formos a acreditar nos contos e nas
fadas que trazem na ponta das suas varinhas talentos variados aos
berços das princesas recém-nascidas.
Não pude supor que a
característica que melhor me viria a definir no futuro e por toda a
minha vida fosse ser mãe. Não estava à espera e nem sei como isto me foi
acontecer. Muito menos pude prever que aceitaria com uma alegria quase
pateta este fabuloso destino, sabendo perfeitamente que nem é sequer a
minha melhor característica, o mais brilhante dos talentos com os quais
iria ou poderia dominar o mundo inteiro.
As mães são imperfeitas.
Nascem
imperfeitas, são seres em permanente construção e reconstrução e andam
nisto a vida toda, sem que a obra se dê por acabada.
As mães são
todas feitas disto: eternas insatisfeitas, menosprezam tudo, feitos
hercúleos e heróicos, não hesitam um momento que seja: seguem em piloto
automático e trepam a montanha que se segue sem se terem dado ao luxo de
recuperar o fôlego ou de ver a vista, porque há uma única coisa que as
mães magnificam sem limites e para a qual vivem obcecadas: os seus
filhos; os sonhos dos seus filhos.
Elas seguem a marcha ordeira
das mães a vida inteira, e pelo caminho tratam de tudo o resto que não
pode ficar para trás e vem atrelado, dificultando a jornada, mas
tornando as mães cada vez mais fortes.
As mães ficam sempre de
pé, como as árvores, cheias de raízes pelo mundo fora e brotam ramos,
flores e frutos: a certa altura as mães são imortais.
Esta
semana, a semana em que inauguro a minha crónica na VISÃO como
‘Especialista em Assuntos de Família’ (os Deuses só podem estar loucos e
a Fada Madrinha que me tocou com a varinha num dia capicua de Julho
sorri a um canto com orgulho e soberba) quase perdi a minha mãe.
Vi
toda a minha vida a andar para trás; rebobinei tudo à porta do Hospital
de Santa Maria: parti da estabilidade e felicidade em que me encontro
orgulhosamente e depois recuei para as primeiras dores de crescimento,
dei um salto para trás e revi a impetuosidade e arrogância da minha
juventude, mais um passo de caranguejo e tropecei na imbecilidade da
minha adolescência, e fui recuando, recuando até à menina doce, de
tranças enormes e covinha na bochecha ao colo da minha mãe. Encolhi à
porta dos Cuidados Intensivos do Santa Maria (outra mãe, a quem pedi com
todas as minhas forças que salvasse a minha). Não envelheci esta
semana: fiquei frágil, vulnerável, fiz-me outra vez criança de colo
assustada.
A minha primeira crónica na VISÃO não estava pensada para ser sobre as mães. Sobre a minha Mãe.
Corresponderia
ao desafio que a Direção da VISÃO me entregou, e que tanto me honra —
pretendia falar sobre um tema da actualidade, cruzando-a com a amostra
considerável de crianças que tenho lá em casas. Eu ia falar sobre os
miúdos e a política, sobre como eles vivem o impasse político nacional e
a crise económica e financeira durante a qual duplicámos o tamanho da
prole, numa mistura explosiva de fertilidade e bancarrota que lhes tirou
alguns luxos e parvoíces fabricadas na China, um tsunami demográfico
numa família de classe média portuguesa que teve de se reinventar e
rever todas as suas prioridades, que deixou de ser piegas e se fez à
vida, conquistando coisas incríveis que dinheiro algum consegue comprar.
Que nos trouxe até aqui, por exemplo, à Visão.
Esta seria uma
crónica mordaz sobre esquerda, sobre direita, sobre o olhar lúcido e
acutilante dos meus filhos mais velhos sobre as eleições legislativas e
sobre o impasse político fascinante que enfrentamos.
Desculpem-me a interrupção, a crónica nos parâmetros ditos normais seguirá dentro de momentos.
Nenhuma
filha, mesmo que ordenada mãe, está preparada para enfrentar, numa pega
de caras, a mortalidade da sua mãe. Nenhuma filha, mesmo aquelas que já
são mães, pode estar preparada para se tornar a mãe da sua mãe.
Aconteceu-me tudo isso esta semana.
A
mãe que eu sou para os meus filhos é um projecto que tem pouco a ver
comigo, com a minha vontade. Sou produto dos meus quatro filhos tão
lindos e tão insuportáveis. A mãe que eu sou também nada tem a ver a mãe
que a minha mãe é para mim.
Amor com amor se paga: eu mudei para
todo o sempre a minha mãe e não satisfeita já é ela velhinha e eu
mulher feita e continuo a obrigá-la a engolir as suas verdades, a vergar
todas as suas convicções, a revirar-se do avesso porque assim a obrigo,
a meu bel-prazer.
A minha mãe reprovou grande parte das minhas
opções de vida: muitas vezes feriu-me deliberada e conscientemente,
porque quis que eu fosse mais do que uma mãe. Achou em consciência que
ser mãe não bastava, que não era o melhor para mim, uma mulher moderna,
brilhante, com tantos e tão variados talentos.
As mães insistem
até ao limite da quase ruptura, esticam a corda, usam truques baixos e
jogadas rasteiras, porque têm de ter a certeza que os filhos estão
seguros dos passos determinantes que vão dar na vida.
O que é que a minha mãe me ensinou neste ofício de ser mãe?
Ensinou-me a capitular.
As mães desistem pelos filhos. Só por eles morrem e só por eles desistem.
A
luta é sangrenta, comigo foi; a minha mãe nunca me facilitou a vida:
passou-me atestados de loucura e accionou o modo de emergência quando
anunciei que ia ser mãe pela quarta vez, sem pôr em causa a continuidade
de uma gravidez de alto risco não planeada. Disse-me coisas horríveis,
testou-me e levou-me ao limite, e depois aceitou este meu e seu destino.
Somos mães. É isso que somos.
Na manhã seguinte a sobreviver a
um AVC, a minha mãe emudeceu, sem conseguir exprimir uma única palavra.
Quando cheguei à primeira hora da visita à enfermaria dos cuidados
especiais de Neurologia, já tinha arranjado maneira de explicar à equipa
da urgência que tinha quatro netos. Tinha precisado as suas idades
detalhadamente. E eu descobri que talvez haja uma coisa tão poderosa
como ser mãe: as avós, parece-me, estão dispostas a renascer pelos
netos.
E já agora, ainda que pela ordem inversa, vamos às
apresentações: chamo-me Diana Ralha. Sou a mãe da Carolina, do António,
da Aurora e da Isaura, diabretes deliciosos que são netos da Margarida
Oliveira, a minha mãe.
[A minha mãe odeia literatura, abomina
poesia e não vai ler esta crónica. Não faz mal: as mães nunca gostam de
tributos, porque os filhos são o seu maior troféu, são a sua glória]
IN "VISÃO"
24/10/15
.
Sem comentários:
Enviar um comentário