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Ser discreto, ser ético
Ouvimos a telefonia sem fios e percebemos que ser discreto e prudente não está na moda.
1. Andamos na rua. Fora de portas. Vemos cartazes nas paragens dos
transportes públicos e não queremos acreditar. Médicos em fotografias
grandes que fazem propaganda a um hospital. Uma é do tempo em que o
mundo era cinzento e a outra é colorida. A segunda aponta um conjunto
numeroso (milhares) de atos médicos depois da primeira (cirurgias,
partos, exames).
Os fotografados mostram sinais do tempo que
passou mas a propaganda não é deles – é do hospital onde trabalham.
Certamente que o uso das suas imagens só é possível porque os
fotografados consentiram. Mas alguém está a esquecer que o Código
Deontológico da Ordem dos Médicos, que a todos obriga, estabelece (no
artigo 11.º) que !na divulgação da sua atividade o médico deve abster-se
de propaganda e de autopromoção" e proíbe (no artigo 12.º), por ser
«particularmente grave [,] a divulgação de informação suscetível de ser
considerada como garantia de resultados ou que possa ser considerada publicidade enganosa».
Podemos,
é verdade, presumir que tal quantidade traduz igual qualidade e até é
possível que essa correspondência seja real na maioria dos casos. Quando
uma pessoa sente necessidade de recorrer a cuidados de saúde é natural
que procure saber o melhor serviço que está ao seu alcance. No momento
de aceitar a realização de uma intervenção, ser-lhe-á pedido que
comprove, com a sua assinatura, que consente o ato na condição de ser
devidamente esclarecido sobre o que esse ato significa: riscos que corre
e resultados que pode legitimamente esperar. É nesse momento que é
justo que lhe sejam facultadas estatísticas do desempenho – quantos atos
feitos, quantos tiveram êxito e quantos falharam. Não há, é certo, essa
tradição entre nós mas, é sabido, as tradições começam em qualquer
altura.
2. De qualquer modo, o referido código de conduta dos
médicos portugueses alude (no artigo 12.º) a uma "publicação de anúncios
(…) [que] tem de revestir forma discreta e prudente".
Ouvimos a
telefonia sem fios e percebemos que ser discreto e prudente não está na
moda. Alerta cancro! É uma rubrica radiodifundida que nos diz que há
tratamentos novos que são entusiasmantes. Parece ser uma boa notícia! A
imunoterapia oncológica, dizem-nos todas as ondas das manhãs, é muito
melhor do que a quimioterapia e talvez seja verdade. Também dizem que
ainda decorrem ensaios clínicos que comprovem as vantagens mas que
doentes e médicos estão entusiasmados. Note-se que, por um lado, os
médicos anunciam os resultados dos ensaios clínicos em curso antes do
seu termo e sublinham saber que, com o novo tratamento, a sobrevida das
pessoas com cancro do pulmão aumenta alguns meses e, por outro lado,
alertam para os custos desses novos tratamentos. Ouve-se, em paralelo,
um doente afirmar que está muito grato por estar a participar no ensaio
clínico pois está a sentir-se melhor (disse também que tinha
interrompido, por uns dias, o tratamento por ter tido uma “pequena”
pneumonia) sem mostrar que tivesse sido informado sobre a dimensão da
sobrevida. Seria, aliás, importante saber quais as diferenças de
sobrevida e de qualidade de vida em três grupos: com a “velha” quimioterapia, com a “nova” imunoterapia e sem qualquer terapia.
Seja
como for, os ensaios clínicos com novos tratamentos devem, em
princípio, comparar grupos de doentes sob tratamentos supostamente
eficazes e não deixar doentes sem tratamento. O desenho e execução
destes ensaios são (devem ser) controlados por uma autoridade reguladora
(INFARMED) e sujeitos a apreciação por uma comissão de ética, nacional,
única, independente da autoridade, dos investigadores e dos promotores
(CEIC). Ora, o anúncio público de resultados, com a colaboração dos
investigadores e dos promotores, antes do final dos ensaios, tem de ser
liminarmente condenado ou, em alternativa, tem de levar à interrupção do
ensaio e à publicação imediata dos achados.
3. Pode ser verdade
mas parece cedo. Se e quando se demonstrar a eficácia de um novo
tratamento, então, importa que seja anunciada e se autorize a sua
comercialização e se definam os preços. Antes do final das
investigações, porque precisamos de saber se a eficácia se refere à
sobrevida adicional, aos efeitos secundários ou à cura, configura um
caso de publicidade perigosa e imprudente ou uma manobra comercial de
contornos duvidosos.
Criar expectativas é perverso ainda que elas
venham a confirmar-se, sobretudo se não são declarados potenciais
conflitos de interesses. Não é, manifestamente, um caso de liberdade de
informação – é uma questão de seriedade. Ambos os casos mostram quanto
ser discreto é ser ético!
Neurologista aposentado
IN "PÚBLICO"
03/07/15
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