Linhas verdes
e linhas vermelhas
Seja o que for que suceda com a Grécia, o grito de rebelião da sua população e do Syriza foi uma vitória.
Nós repetimos que “vemos, ouvimos e lemos” e “não podemos ignorar”,
mas muitas vezes parece que ignoramos. Perante a escalada de
desumanização que nos rodeia, é de ordem política e moral a necessidade
de agir. Alguém poderá perguntar daqui a dezenas ou centenas de anos,
olhando retrospectivamente: “Eles estavam lá e o que é que fizeram?”
Tal como hoje podemos perguntar aos socialistas,
comunistas, outras organizações de luta e aos cidadãos em geral o que é
que não fizeram e o que fizeram de errado nos anos que precederam a
dominação nazista e fascista na Europa.
É perante a situação
actual que podemos reflectir sobre as linhas verdes de coincidência e as
linhas vermelhas de limite ao tacticismo e às cumplicidades tóxicas,
que deverão nortear a necessidade de unidade à esquerda. Basta andar com
os ouvidos atentos à população para perceber que essa necessidade é
sentida de forma urgente para fora dos círculos restritos das
organizações partidárias, fechadas sobre si próprias, com a sua
narrativa interna e o eleitoralismo clubista.
A história que a
esquerda se foi contando a partir da revolução francesa deu a aparência
de uma linha de tendência ascendente, apesar de algumas quedas
terríveis. E de facto não vemos hoje na Europa multidões de andrajosos e
famintos a trabalharem dezasseis horas por dia; em muitos espaços
mundiais as mulheres têm igualdade de direitos legislada; já não há
colónias; a América Latina saiu das ditaduras e da fome: a Ásia não é
devastada por milhões de famintos. Quanto à direita, essa não tem
história, senão a das “glórias da pátria”, que não podem ser vistas com
os nossos critérios actuais. A direita não tem moral, é pragmática. Mas a
partir da terceira Revolução Industrial, com a introdução da
microelectrónica, novas formas de energia, de produção e de comunicação,
o mundo entrou numa espiral, a qual não pode ser lida com as grelhas de
leitura do passado. As grandes massas de proletariado vão sendo
sucessivamente substituídas por máquinas. As pessoas, as empresas, os
países, o mundo, entraram numa espiral de crédito e de dívida, que não
tem fim. Um operário da indústria automóvel, com contrato por tempo
indeterminado, pode ter uma vida mais estável que um pequeno empresário,
individual ou com poucos trabalhadores, endividado nas finanças, no
empréstimo da casa, na Segurança Social. Estas dívidas, que são as da
“vergonha”, constituem uma mancha de óleo que cobre todo o país e que
não parece poder ter correspondência num movimento de massas.
Na
situação actual, a leitura da luta de classes não pode ser a da primeira
e segunda revoluções industriais. As colónias fora da Europa
desapareceram, mas nós, os países do Sul da Europa, somos as novas
colónias dos países do Norte, perdemos a soberania e também temos por cá
os seus representantes, os novos administradores de tabanca. Por isso
seja o que for que suceda com a Grécia, o grito de rebelião da sua
população e do Syriza foi uma vitória. Havia outro caminho? Enquanto
isto, as proezas geoestratégicas dos países “ocidentais” (estão a
ocidente de quê? O mundo é redondo) transformaram o Médio Oriente e o
Mediterrâneo num novo holocausto. As desigualdades agravam-se como
demonstra Piketty e claro que os desiguais de cima estão dispostos a
todas as crueldades para aí se manterem. Tudo isto parece ser a implosão
do sistema, mas antes de acabar muito sangue e sofrimento fará correr.
Parafraseando o poeta Manuel Pina, “ainda não é o fim, calma, é apenas
um pouco tarde”.
Quem não tiver dúvidas que levante um braço. E,
com modéstia, lembremo-nos que houve um tempo, em que nós, tal como o
Presidente da República, não tínhamos dúvidas e nunca nos enganávamos… A
surpresa é que muito do discurso dos partidos de esquerda é hoje, quase
sempre, remanescente dessa época. E em vez de uma procura de pontos
comuns, há um clubismo e um eleitoralismo, que põem em segundo ou
terceiro lugar o mundo real. Ora há convergências possíveis ao nível da
educação, da saúde e da segurança social. É possível uma luta comum
contra a precariedade. É possível encontrar uma barreira às
privatizações. Para tudo isso é necessário ter o espírito de encontrar
coincidências e, pelo contrário, não andar a “catar” as divergências,
mesmo que prováveis ou possíveis, no sentido de abrir fossos, onde ainda
pode haver pontes. Claro que a preservação do Estado social é
incompatível com o tratado orçamental (no que é omisso o documento
estratégico do PS), que tem que haver pelo menos renegociação da dívida
enfrentando o centro de poder na Europa. Mas mais uma vez, o caminho
faz-se caminhando, arriscando possíveis erros. A realidade traz-nos
surpresas e não é no quietismo narcísico de análise ou na resistência
enquistada no seu terreno, tratando sempre os outros partidos da
esquerda eleitoral como o inimigo principal, que encontraremos solução
para a desgraça actual. Estaremos agora, nos dias após a morte de
Mariano Gago e os elogios post mortem, a esquecer as críticas
vorazes, sem relevar nunca os lados positivos do seu Ministério, que o
acompanharam enquanto foi ministro, só porque o era num Governo PS? Quem
se esqueceu que vá aos registos dessa época. E pense.
Médica Endocrinologista
IN "PÚBLICO"
30/04/15
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