Crianças assassinadas
Na sequência do assassinato de dois bebés - um de cinco meses, outra de
dois anos - às mãos dos que deviam cuidar deles, fez-se na Assembleia da
República um debate de urgência sobre o apoio aos menores em risco, a
pedido do PS.
Uma semana antes, o ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança
Social admitira ter transferido trabalhadores das Comissões de Protecção
de Crianças e Jovens em Risco para os serviços da Segurança Social,
substituindo funcionários enviados para esse limbo do desemprego que dá
pelo nome de 'requalificação'.
O presidente desse organismo alertara já sucessivas vezes para a gravíssima falta de meios humanos.
No debate parlamentar procedeu-se à habitual sessão de esgrima de
números, seguida da tradicional cerimónia de passa-culpas. O ministro
anunciou um bodo fantástico de 116 mil euros para colocar trabalhadores
da IPSS a tempo inteiro nestes organismos. A última edição do Sol
revelava que, nos últimos 4 anos, foram assassinadas em Portugal 24
crianças - em metade dos casos, pelos próprios pais.
Os maus-tratos a que era sujeita a bebé de dois anos que acabou por
ser morta pelo padrasto tinham sido denunciados há seis meses à
respectiva Comissão de Protecção.
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Soube-se entretanto que, a conselho das 'autoridades médicas' que
laboram em conjunto com a tal Comissão, se decidira adiar a participação
- obrigatória, a partir do momento em que há denúncia - ao Ministério
Público, por se entender que a mãe da infeliz criança estava a começar a
«colaborar».
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Estas subtilezas psiquiátricas não impediram, todavia, que a menina
fosse espancada até à morte, nem que o irmão, de quatro anos, fosse
parar ao hospital, em muito mau estado.
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Ao contrário do que a mansidão lusitana gosta de pensar, nem sempre
há tempo: quando uma criança está a ser diariamente seviciada, não há
mesmo tempo nenhum para apurar os traumas da mãe ou da restante
parentela. Será que perceberam, ou é preciso esperar mais umas tantas
tragédias?
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A denúncia é, aliás, uma raridade.
No Portugal dos brandos costumes que, como ainda há poucas semanas
tivemos oportunidade de ver, aplaude os homicidas fugidos à Polícia, a
noção de crime público demora a criar raízes: não há filosofia de
direitos humanos que vergue a pujança cómoda do provérbio popular, que a
própria Justiça cultiva e incentiva em acórdãos de inultrapassável
pitoresco.
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À sombra de poéticos dizeres como «entre marido e mulher, não metas a
colher» e «quem dá o pão, dá a educação», matam-se mulheres e crianças
sem que se perceba como.
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Sobre o padrasto que desancou até à morte a enteada de dois anos e
quase matou o irmão da menina, de quatro anos, disseram, prazenteiras,
as vizinhas, aos colaborativos microfones televisivos: «Não acredito que
tenha feito de propósito» e «Não tenho razão de queixa dele». E chamam a
isto jornalismo.
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A sacralização da família biológica e
a consideração de que os filhos são propriedade de quem os fez, aliada à
compaixãozinha votada aos pais alcoólicos, pobrezinhos e carentes,
desenha este panorama de desgraça.
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Quando se decidirá que as crianças são titulares de direitos
autónomos - a começar por esse mínimo de serem alimentadas, vestidas e
acarinhadas?
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Quantas crianças portuguesas estarão, neste preciso minuto, a ser torturadas pelos próprios familiares? Alguém pode dizer?
IN "SOL"
28/04/15
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