A grande mentira
Ao longo de cerca de 3 horas e 40, assistimos a entrevistas de Claude Lanzmann a Benjamin Murmelstein, o único decano dos judeus que sobreviveu ao Holocausto
Nunca vi o filme “Shoah”, de Claude Lanzmann, de 1985, mas sei que um
dia vou ser capaz de assistir ao registo em filme da tentativa de
extermínio do povo judaico pelos nazis durante a Segunda Guerra Mundial.
Tenho hoje esta certeza porque fui capaz de ver “O Último dos
Injustos”, outro filme de Claude Lanzmann inicialmente pensado para
fazer parte de “Shoah”. Mas nove horas de filme já não suportavam mais
três horas de entrevistas feitas em 1975, em Roma, a um decano dos
judeus de Theresienstadt, um campo de concentração situado perto de
Praga. Mas como disse Lanzmann a um jornal, “não tinha o direito de
guardar as imagens” só para ele. O filme foi exibido pela primeira vez
em 2013.
Ao longo de cerca de 3 horas e 40, assistimos a entrevistas de Claude
Lanzmann a Benjamin Murmelstein, o único decano dos judeus que
sobreviveu ao Holocausto. O Judenrat, ou Conselho Judaico, era mais uma
manobra administrativa dos nazis, que consistia em nomear judeus para
servirem de intermediários com os nazis. O testemunho de Murmelstein
esclarece que se tratava de mais uma farsa do regime odioso de Hitler.
Os decanos foram executados com uma bala na nuca ou enviados para os
campos de extermínio, à excepção deste último sobrevivente, um homem
intrigante, muito inteligente, além de particularmente dotado para a
sobrevivência.
Por esta razão – que Murmelstein atribui um pouco injustamente ao
acaso, embora seja verdade que o fim da guerra o beneficiou mais a ele
do que aos seus antecessores –, Murmelstein é posto de parte, tratado
como traidor, colaborador dos nazis, como aliás foram considerados
outros decanos. Não tenho conhecimento suficiente para afirmar que
nenhum foi colaboracionista. Mas não foi por “colaborarem” que
sobreviveram, o que nos esclarece sobre os únicos culpados da Solução
Final: o regime nazi, Hitler e os seus capangas. A culpa atribuída aos
judeus faz parte do mecanismo abjecto do negacionismo, outro produto dos
nazis.
Murmelstein é erudito e ataca a ideia de Hannah Arendt de que
Eichmann seria “banal”. “Eichmann era um demónio”, afirma Murmelstein e
conta um esquema de corrupção elaborado numa época em que os judeus eram
convencidos a emigrar, não sem antes darem tudo o que tinham ao Estado.
Eichmann tinha inventado um esquema que implicava a emissão de vistos
falsos e o roubo dos que pensavam que iam emigrar. Assim tinha a sua
própria fonte de rendimento.
Outra mentira dos nazis foi Theresienstadt, apresentado como
gueto-modelo num filme em que se mostravam crianças a brincar, pessoas a
trabalhar e velhos a ler: uma farsa, resultado da “operação de
embelezamento” para apresentar ao mundo e à Cruz Vermelha. Muitas das
pessoas filmadas foram em seguida deportadas para Auschwitz, onde seriam
mortas.
Uma das razões apresentadas por Murmelstein para ter sobrevivido foi
ter combatido os nazis no seu próprio terreno: o da mentira. Para
sobreviver no logro, Murmelstein contou histórias, comportando-se, nas
suas palavras, como Xerazade para sobreviver. Tornou-se indispensável
porque resolvia problemas e era útil. Era a esperança dos nazis para
perpetuar a mentira de Theresienstadt, por isso não o mataram. Ainda bem
que Lanzmann o entrevistou.
IN "i"
04/05/15
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