A distração presidencial
1 Num debate, em
que estava, entre outros, Sampaio da Nóvoa, José Pedro Aguiar-Branco
perguntou aos intervenientes se faria sentido termos um presidente da
República.
Não tenho grandes dúvidas de que o ministro da Defesa
não advogará o regresso da monarquia nem a extinção da instituição
Presidência da República e, assim sendo, interpretei a pergunta como um
desafio à reflexão sobre o papel que o presidente desempenha no nosso
sistema político. Sobretudo, uma tentativa de perceber se o desenho
político e constitucional das suas funções coincide com as atuais
expectativas dos cidadãos. Ou seja, faz sentido andar toda a gente que
ocupa o espaço público, os políticos e demais intervenientes nos
processos de decisão sobre o bem comum, concentrada nas candidaturas à
Presidência da República? Sabendo que as políticas e os políticos servem
para resolver os problemas da comunidade, será que, havendo uma
campanha eleitoral para as legislativas em curso - e é evidente que a
quase seis meses das eleições já está ao rubro -, é no debate de quem
vão ser os candidatos a presidente da República que nos devemos
concentrar? É essa figura que vai ser decisiva nas importantes escolhas
que temos pela frente? Claro que ninguém ignorará que num cenário em que
muito provavelmente não existirá maioria absoluta e em que o próximo
presidente da República terá de lidar com uma solução de governo
potencialmente instável haverá necessidade dum árbitro competente, mas é
evidente que toda esta preocupação com o árbitro faz lembrar demasiado
aquelas equipas de futebol que se esquecem de jogar bem e depois
justificam os seus fracassos com a escolha dos juízes.
O
desprestígio da política e dos políticos e a crise que a democracia
representativa vive tem muitas razões, mas talvez a mais grave seja a
dissonância entre aquilo que são de facto os problemas dos cidadãos e as
preocupações que os seus representantes exibem - e é de justiça
acrescentar que esse desfasamento se alarga a quem no espaço público
reflete sobre o fenómeno político. Que pensarão os cidadãos sobre, por
exemplo, a oposição, quando o primeiro-ministro insinua que tentará, de
novo, trazer ao debate a questão da diminuição da TSU para as empresas, e
os principais dirigentes socialistas estão muito ocupados com Sampaio
da Nóvoa ou Guterres ou com outro presidenciável qualquer? Será que o PS
pensa que as pessoas estão mais interessadas em saber quem vai ser o
seu candidato a presidente do que o que quer fazer com a carga fiscal
sobre o trabalho?
Vem a propósito lembrar uma função presidencial
que, como muitas, não está explícita no desenho constitucional dos seus
poderes: a pedagogia democrática. A que, entre outros aspetos, deveria
servir para chamar à atenção para atropelos que se vão sentindo na
justiça ou na defesa de direitos fundamentais que estão a ser postos em
causa. Intimamente ligada a essa, seria avisado tentar evitar que
processos eleitorais se contaminassem. Que tentasse - conhecendo, no
caso de Cavaco Silva, como ninguém a política portuguesa - evitar que a
confusão entre processos eleitorais se instalasse. Bom, mas talvez a
confusão instalada aproveite a quem não queira falar da real situação do
país, talvez a distração ajude quem Cavaco Silva optou por
incondicionalmente apoiar, esquecendo o que deveria ser o seu papel de
moderador. Não acho que seja este o caso, mas que - com a colaboração
plena do PS - andamos a falar de alhos quando deveríamos estar a tratar
de bugalhos não me parece que existam dúvidas. Seja como for, o atual
presidente já há muito de facto se demitiu das suas funções, e de tal
forma que, provavelmente, tenha sido por isso que Aguiar--Branco se
lembrou de perguntar se faz sentido termos um presidente da República.
O
que, sobretudo, importa, e vale, é a profunda convicção de que os
portugueses sabem bem o que está em causa em cada uma das eleições. O
que os confunde é saberem que quem os devia representar parece não
saber. É ver que se perde um tempo desproporcionado a debater questões
que não são, no momento, as que importam para as suas vidas. Convém
mesmo falar do que lhes interessa. É que se não for assim pode ser que
eles se desinteressem de quem os quer representar, e aí, sim, teríamos
um enorme problema.
2 O jornalista João Bonifácio escreveu
um livro, Daqui não Sais Viva, sobre o caso Palito. A história do homem
que alvejou quatro mulheres, incluindo a sua filha e a ex-mulher,
matando duas.
É o relato muito aprofundado dum acontecimento que
durante semanas ocupou aberturas de televisões e primeiras páginas de
jornais, mas é muito mais do que isso. É o retrato da forma como
convivemos com a violência doméstica, da maneira como a toleramos e, no
fundo, a promovemos com o nosso silêncio. Como assistimos passivamente
aos maus-tratos de que, principalmente, as mulheres são vítimas. Não é a
história dum atentado numa terra longe dos principais centros urbanos: é
o retrato da nossa comunidade. Perturba, mas é um livro obrigatório.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
12/04/15
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