15/04/2015

MARIANA MORTÁGUA

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A máquina de usar pessoas

Ouvi uma conversa telefónica alheia no outro dia no metro da linha azul, em Lisboa. Uma rapariga, a quem nunca cheguei a vislumbrar a cara, comentava com alguém do outro lado a entrevista de emprego que acabara de ter. Perguntaram-lhe quanto queria ganhar, ela não sabia, e teve medo de dizer, mas ficou a saber que era um pouco acima do salário mínimo nacional, isso garantiam. Não era perfeito, dizia, mas ao menos não era um estágio. Ficou agradecida.

Agradecidos por ganhar um pouco mais do que o salário mínimo, por não ser trabalho à borla, por não ser um estágio, a que se sucede outro estágio, e a constante lembrança de que aos 30 anos ainda não se chegou sequer à condição de trabalhador.

São os estágios curriculares, os estágios para ganhar experiência, para fomentar a criatividade, para ter no currículo. E vai-se ficando, na esperança de que um dia alguém olhe para nós, reconheça o esforço voluntarista e nos contrate para um emprego a sério. Quando esse dia vier, se vier, vai ser difícil negociar um salário muito acima dos 600 euros. Afinal, há centenas de estagiários dispostos a fazer o mesmo por salário nenhum.

Entrementes a economia portuguesa vai-se tornando mais "competitiva". Mão de obra qualificada e barata para tirar o país da crise, tudo em nome do interesse nacional, é claro.

São centenas de empresas a viver acima das suas possibilidades, a sobreviver à custa de trabalho gratuito ou subsidiado pelo Estado. Algumas maiores, como a Fnac ou a Danone, outras mais pequenas, como escritórios de advocacia, design ou arquitetura. Os estágios representam seis em cada dez postos de trabalho criados no país.

O Governo PSD/CDS tinha um plano para libertar a economia do Estado. Recusou-se a criar mais empregos, despediu na Função Pública, cortou nos apoios aos desempregados e suprimiu qualquer réstia de investimento público. Agora gasta centenas de milhões a subsidiar esta vergonha da economia dos estágios para, no fim, poder propagandear a redução do desemprego.

Falemos com clareza. Os estágios são importantes mecanismos de requalificação/formação e até empregabilidade quando direcionados a grupos específicos, com conta peso e medida. O objetivo último é sempre a transição para um emprego com condições e bem pago. Usar os estágios para substituir o emprego, mascarar o desemprego, desincentivar a contratação e baixar o nível salarial é transformar o mundo do trabalho numa grande máquina de usar precários, pessoas.


IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
14/04/15


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