A máquina de usar pessoas
Ouvi uma conversa telefónica alheia no
outro dia no metro da linha azul, em Lisboa. Uma rapariga, a quem nunca
cheguei a vislumbrar a cara, comentava com alguém do outro lado a
entrevista de emprego que acabara de ter. Perguntaram-lhe quanto queria
ganhar, ela não sabia, e teve medo de dizer, mas ficou a saber que era
um pouco acima do salário mínimo nacional, isso garantiam. Não era
perfeito, dizia, mas ao menos não era um estágio. Ficou agradecida.
Agradecidos
por ganhar um pouco mais do que o salário mínimo, por não ser trabalho à
borla, por não ser um estágio, a que se sucede outro estágio, e a
constante lembrança de que aos 30 anos ainda não se chegou sequer à
condição de trabalhador.
São os estágios curriculares, os estágios
para ganhar experiência, para fomentar a criatividade, para ter no
currículo. E vai-se ficando, na esperança de que um dia alguém olhe para
nós, reconheça o esforço voluntarista e nos contrate para um emprego a
sério. Quando esse dia vier, se vier, vai ser difícil negociar um
salário muito acima dos 600 euros. Afinal, há centenas de estagiários
dispostos a fazer o mesmo por salário nenhum.
Entrementes a
economia portuguesa vai-se tornando mais "competitiva". Mão de obra
qualificada e barata para tirar o país da crise, tudo em nome do
interesse nacional, é claro.
São centenas de empresas a viver
acima das suas possibilidades, a sobreviver à custa de trabalho gratuito
ou subsidiado pelo Estado. Algumas maiores, como a Fnac ou a Danone,
outras mais pequenas, como escritórios de advocacia, design ou
arquitetura. Os estágios representam seis em cada dez postos de trabalho
criados no país.
O Governo PSD/CDS tinha um plano para libertar a
economia do Estado. Recusou-se a criar mais empregos, despediu na
Função Pública, cortou nos apoios aos desempregados e suprimiu qualquer
réstia de investimento público. Agora gasta centenas de milhões a
subsidiar esta vergonha da economia dos estágios para, no fim, poder
propagandear a redução do desemprego.
Falemos com clareza. Os
estágios são importantes mecanismos de requalificação/formação e até
empregabilidade quando direcionados a grupos específicos, com conta peso
e medida. O objetivo último é sempre a transição para um emprego com
condições e bem pago. Usar os estágios para substituir o emprego,
mascarar o desemprego, desincentivar a contratação e baixar o nível
salarial é transformar o mundo do trabalho numa grande máquina de usar
precários, pessoas.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
14/04/15
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