05/04/2015

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ESTA SEMANA NO
  "EXPRESSO"

O caso contra o glúten

As prateleiras dos alimentos sem glúten ocupam cada vez mais espaço nos supermercados. A proteína presente no trigo, centeio, aveia e cevada é proibida a quem sofre de doença celíaca, e nos últimos tempos vingou a moda de a evitar para emagrecer. Mas os últimos estudos vieram desdizer os seus efeitos nefastos. Afinal, em que ficamos?
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No longo corredor do supermercado há uma prateleira que salta à vista. Em cima, letras garrafais alertam que aquela é a zona "gluten free". Há de tudo: pão, bolachas, tostas, massas e até mesmo sopa. Com a lista das compras numa mão e o cesto na outra, Ana Krausz, 30 anos, lê religiosamente os rótulos das embalagens. Tudo para não correr o risco de comprar alimentos com glúten, uma proteína que está presente no trigo, no centeio, na aveia e na cevada.

Ana não tem nenhum problema de saúde. Não é celíaca (pes- soas que são intolerantes à proteína), mas jura a pés juntos que uma vida sem glúten lhe trouxe mais saúde, a fez perder peso, volume e ganhar uma nova energia: "Comprovei no meu próprio corpo que me fazia mal e deixei de o comer". 
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A MODA DOS ENFEZADOS
Tal como Ana, há mais curiosos a fazer a mesma experiência. Esta é, aliás, uma das mais recentes tendências no que toca à alimentação: retirar tudo o que tenha a 'maldita' proteína do prato como forma de emagrecer e ter um estilo de vida mais saudável. Os números provam-no. Uma sondagem publicada há cerca de um mês na revista "Time" revelou que a comida sem glúten está em franco crescimento nos Estados Unidos, com os consumidores a gastarem cerca de 7 mil milhões de euros por ano neste tipo de alimentos. Estima-se que em 2016 as vendas atinjam os 14 milhões de euros. Porém, apenas 1% da população mundial sofre de doença celíaca. A moda antiglúten muito ajudou celebridades, como Heidi Klum ou Alessandra Ambrósio, que publicamente revelam que retiraram a proteína dos seus pratos. 
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Por cá, a moda consolidou-se sobretudo no último ano. Teresa Alves Barata, health coach ou especialista em reeducação alimentar, abriu há três anos a Liquid, uma pequena loja na baixa lisboeta com sumos naturais e comida sem glúten. Ao princípio foi difícil. Era uma coisa estranha, mas como diz o ditado, o hábito acabou por se entranhar. "Há um ano demos um pulo. Hoje em dia as pessoas estão muito mais interessadas naquilo que comem", explica. Uma parte do trabalho de Teresa consiste, precisamente, em ver até que ponto cada pessoa suporta comer glúten. Primeiro, 'receita' um detox, que equivale a estar três dias a líquidos de frutas e vegetais, para limpar o organismo. A seguir, pede-lhes para cortarem o glúten uma semana e analisarem como se sentem.
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Ana começou assim. Na passagem de ano de 2012 para 2013 tomou consciência das consequências do seu estilo de vida e decidiu pôr um ponto final nos exageros da comida. "Estava a abusar, por causa do trabalho, em cocktails, almoços e jantares." Sentia-se mal, inchada, cheia de dores de barriga e sem ânimo. De uma forma autodidata correu para a internet e pôs-se à procura de dicas para uma vida mais saudável. Surgiram-lhe vários estudos e artigos médicos que diziam que o glúten era "péssimo" para a saúde, em "especial para as mulheres". O que lia parecia fazer sentido, era a resposta para o crescimento de alimentos sem glúten nas prateleiras dos supermercados. 
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Ao fim de um mês de comida sem glúten estava a voltar ao normal. Sentia-se menos inchada e, apesar de só ter perdido dois quilos, tinha muito menos volume. Ao ponto de a roupa deixar de lhe servir. As dores de barriga passaram e recuperou a energia. "Até a pele ficou melhor."
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Moda passa de boca em boca
Se ao princípio a alimentação sem glúten se destinava apenas aos doentes celíacos, que não podem de todo comer a proteína, hoje é uma tendência. "Isto é uma coisa que passa de boca em boca, pois quem corta no glúten começa a sentir-se melhor", frisa Pedro Lobo do Vale, um dos primeiros médicos em Portugal a estudar a alimentação para celíacos.
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É por isso que estes alimentos passaram do nicho de mercado, como as farmácias e supermercados biológicos, para todas as grandes superfícies. "Ainda me lembro do primeiro produto sem glúten, era um pacote de bolachas Maria que vinha dentro de uma espécie de caixa de sapatos", recorda o médico. 
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Na origem da tendência está a sensibilidade não celíaca ao glúten. "Esta proteína não pode ser digerido por qualquer pessoa", explica o médico Alessio Fasano, diretor do Centro para a Pesquisa da Doença Celíaca, em Boston, nos EUA. Há 18 anos que o gastrenterologista pediátrico estuda a proteína e os seus efeitos. Nos anos 90, foi ele que começou a chamar a atenção para a doença celíaca, numa altura em que se acreditava quase não existir nos EUA. Hoje, vai mais longe e defende que o glúten traz malefícios também para quem é saudável. Os seus estudos indicam que há cerca de seis a sete vezes mais pessoas sensíveis ao glúten do que celíacos.
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Enquanto na doença celíaca o glúten provoca lesões no intestino delgado que dificultam a absorção dos nutrientes, vitaminas e minerais, quem 'apenas' é sensível não sofre os mesmos riscos. Os sintomas, porém, são muito parecidos mas menos intensos. Aos olhos de um leigo, esta parece uma fronteira difícil de definir. "Como [a sensibilidade] ainda é um mistério a nível científico não existe nada que indique o que acontece, quais são os riscos", explica a dietista Daniela Afonso, da Associação Portuguesa de Celíacos (APC). 
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Científico, mas pouco
A comunidade científica diverge. A teoria da sensibilidade ganhou consistência, em 2011, quando Peter Gibson, diretor de gastrenterologia na Universidade de Monash, na Austrália, publicou um estudo a confirmar a sua existência. A investigação tinha reunido um grupo de apenas 34 pessoas, que não eram doentes celíacas, mas que apresentavam sintomas parecidos, como o inchaço, as dores de barriga e o cansaço. Não satisfeito com os resultados, o médico continuou o trabalho e veio agora desdizerse. Noutro estudo mais recente, Gibson defende que os sintomas se devem a uma dieta exagerada em carboidratos ou a efeitos psicológicos. "Em oposição ao nosso primeiro estudo, não encontrámos uma resposta específica ao glúten", lê-se nas conclusões publicadas no jornal da Associação Americana de Gastrenterologia. Foi uma pedrada no charco para todos os especialistas que até então se baseavam nas suas conclusões.
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Quando se trata de dieta e vida saudável o terreno é fértil em teorias. Alessio Fasano reconhece que esta é uma oportunidade de mercado para os produtos sem glúten. "Ao contrário do que se pensa não é essa comida que faz emagrecer. Muitas vezes têm componentes que a tornam hipercalórica", esclarece. 
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Voltar às origens
Não é por trocar o esparguete com glúten por esparguete sem glúten que se vai perder peso. O melhor é mesmo comer o que é mais natural, o que não é processado. "As pessoas emagrecem quando cortam o glúten porque ele está presente numa grande parte de alimentos processados, esses sim, toda a gente sabe que engordam", diz o médico. É altura de voltar às origens e consumir o que vem da terra.
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Catarina Beato é o exemplo disso. Trocou os doces, os processados, como o pão e as bolachas, e fritos pela carne, peixe, legumes e fruta. O suficiente para em três meses perder 15 quilos, pondo de lado o 44 de roupa que vestia. "Se não sabes quem é o pai ou a mãe da comida não comas", brinca. 
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Aproveitando a crise, e sem querer ser fundamentalista, foi substituindo alimentos. Aos poucos, e também de uma forma autodidata, trocou a massa pela quinoa, experimentou os frutos secos e os leites vegetais. "Sempre tive uma relação muito compulsiva com a comida, isso não perdi. O que fiz foi voltar às raízes e comer o que está mais próximo da terra, o que sabemos de onde vem." Aquilo que começou por ser uma caminhada contra o peso e se tornou uma mudança radical de vida inspirou um livro ("A Dieta das Princesas"), e um blogue com o mesmo nome. Apesar do exemplo contra os quilos, não há radicalismos. Em momentos de grande desejo comete um 'pecado' e sucumbe a um pão com manteiga. "É saudável numa dieta ter momentos de pecado, de gula. Quanto mais não seja, faz bem à cabeça", diz Teresa Alves Barata.
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Além disso, Alessio Fasano frisa que, para quem não é celíaco, vale mais comer um pão de vez em quando do que muitos pães sem glúten feitos para durar meses. 
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Proibidos de cheirar glúten
À boleia da popularidade do "gluten free", os doentes celíacos têm hoje mais opções nos supermercados. É que para eles não se trata de uma questão de moda, já que o único tratamento que podem fazer é uma alimentação sem a proteína. "Não podem sequer cheirar o glúten", sublinha Pedro Lobo do Vale.
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PURO VENENO
Ser celíaco equivale a não tocar em nada que possa ter estado em contacto com o glúten. "Temos tudo a duplicar na cozinha. Ao pe- queno-almoço há duas torradeiras, dois pacotes de manteiga e duas facas para evitar a mínima mistura", conta Inês Serrano, mãe de duas meninas celíacas. Nesta casa, a faca que barra o pão sem glúten não é a mesma que barra o pão com glúten, um mínimo grão pode ser perigoso. 
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Desde que há três anos as filhas foram diagnosticadas, que atos tão banais como comer fora ou ir a uma festa de anos têm de ser planeados com antecedência. "No outro dia estávamos no restaurante e tivemos de pedir para ver o óleo das batatas fritas, para saber se já tinha sido usado a fritar alimentos com farinha de trigo", lembra Nuno, o pai da família. Com a doença das meninas, Inês tornou-se uma especialista em receitas sem glúten. Substituiu tudo o que pode, passou a fazer pão em casa, a farinha de trigo usada nos bolos deu lugar à de arroz, ou à fécula de batata e habituou-se a ler até à exaustão os rótulos das embalagens para ter a certeza de que não têm os mínimos vestígios da proteína.
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Esta doença é silenciosa. Pode levar anos até ser diagnosticada. Mafalda Carvalho viveu até aos 40 sem saber que a tinha. Há três anos, uma dor abdominal aguda, já a irradiar para a zona lombar, levou-a ao hospital. Anemia aguda, falta de ferro e ácido fólico. Ao fim de uma semana, e depois de se terem levantado hipóteses de ter a doença de Crohn, veio o diagnóstico: era doente celíaca.
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Os sintomas pouco evidentes tinham-na mantido na ignorância até ali. "Como viajo muito tinha associado o cansaço às mudanças de temperatura. Há sinais mas uma pessoa não liga", sublinha a presidente da APC. Haveria, certamente, um dia em que sucumbiria. 
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O cancro ou a subnutrição são alguns dos alertas apontados por Alessio Fasano. "Se não digere ou absorve proteínas isso pode deixar o sistema imunitário fragilizado e levar a doenças graves", frisa o médico. 
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A partir do momento em que soube do que sofria, Mafalda entrou na despensa e começou a colocar de lado todos os alimentos que tinham a proteína proibida. Quando tinha uma pilha grande do lado de fora, e em vez de entrar em pânico, percebeu que aquela era uma boa altura para começar a comer comida mais natural, como legumes e vegetais."Não preciso de comer bolos todos os dias, a maioria dos iogurtes também não tem glúten e há cada vez mais alternativas já que se fala mais do assunto." Foi o caminho para uma alimentação mais saudável. Também em casa da família Serrano aconteceu o mesmo. É que produtos processados como as batatas fritas de pacote, hambúrgueres e pizas foram banidos. "A carne, o peixe, a batata, os legumes, a fruta, ou seja, os nossos principais alimentos não têm glúten", frisa Inês Serrano.
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Com a tendência antiglúten a atingir um pico, Alessio Fasano, insuspeito de desvalorizar os efeitos da proteína, diz que apenas os doentes celíacos têm de ser radicais. E deixa um conselho para quem está com vontade de ser radical: "Experimentem ficar uma semana sem consumir glúten e vejam a diferença."
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* Os fundamentalistas da boa alimentação morrem todos enfezados. É necessário bom senso e prazer no que se come, no nosso país há uma diversidade enorme de saborosos produtos, gasta-se mais dinheiro na  fast food e similares, pode acrescentar como despesas alimentares o dinheiro gasto no médico e na farmácia por consumo de alimentação processada.


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