Um estrondoso
murro na mesa!
Apenas sobra a pergunta: quem estaria do lado de lá da mesa esmurrada
por Vasco Lourenço? Cavaco Silva ou Passos Coelho, eleitos por sufrágio
universal directo?
Reuniu-se
no Sábado, 14 de Março de 2015, na Fundação Calouste Gulbenkian, o
chamado «Congresso da Cidadania». O certame foi organizado pela
«Associação 25 de Abril», ali representada pelo capitão de Abril Vasco
Lourenço. (Ignoro se por mais alguém.) A par de pessoas eminentemente
respeitáveis, como por exemplo o general Ramalho Eanes, contavam-se nada
menos do que dois putativos candidatos a candidatos à Presidência da
República, Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa, e
Carvalho da Silva, antigo secretário-geral da CGTP.
A avaliar pelo jornal Público (15.03.15), a reunião cidadã
foi dominada pelo tema da “austeridade”, ferozmente vituperada pelos
intervenientes e quesito principal do libelo acusatório dirigido contra o
governo. Não eram direcções partidárias e respectivos acólitos que ali
estavam em conclave.
Possíveis militantes destas agremiações antipáticas
e tudo somado nocivas, deviam por certo figurar a título pessoal,
porque aquilo era uma reunião de cidadãos não corrompidos pelo trapezismo partidário, nem pela ambição do poder. Ali falavam os habitantes da polis,
e não os representantes de interesses. Revestidos da majestade da
cidadania, e, por consequência, dotados de um superior discernimento,
invectivaram a maldade de um governo que por puro sadismo inflige ao
País, ano após ano, sem se cansar, sacrifícios cruéis e desnecessários.
Sampaio da Nóvoa, para não ferir a sensibilidade de ninguém e agradar
a toda a gente, elogiou todos os presidentes da República excepto,
evidentemente, o actual, e não se coibiu de apontar o exemplo de
Humberto Delgado, que se dizia disposto a “morrer pela liberdade”.
Implicitamente, recomendava este código de heroicidade para todos os
bons patriotas, e presume-se que para si mesmo. Ou estaria a dizer-nos
que a liberdade corre risco?! Contudo, antes de deitar mão a um recurso
tão extremo, impunha-se “acabar com esta política [de austeridade] antes
que ela acabe connosco” (o que sempre nos pouparia o sacrifício da
própria vida).
Depois de lamentar a desunião que reina infeliz e
inexplicavelmente no universo dos descontentes – Portugal inteiro menos
os serventuários da maioria que nos desgoverna – insinua a vantagem
da sua hipotética candidatura: “com políticos antigos não haverá
política nova”. (Coitado de Costa, que está na política quase desde que
nasceu.)
Carvalho da Silva expôs, como compete a um candidato a candidato à
Presidência, a sua rasgada visão da Europa e do destino europeu de
Portugal. Aliás, Vasco Lourenço, que nunca foi dado a complexidades, já
tinha exposto muito simplesmente o que tanta gente estúpida acha
complicado: “a crise da Europa é uma crise de mesquinhez”. Carvalho da
Silva concordou: que a Europa trate de se tornar no que deve ser – “um
espaço de solidariedade e cooperação entre os povos”. Isto é, que não
seja “mesquinha”, quer dizer, que o Norte pague as dívidas do Sul. No
dicionário da esquerda, solidariedade e cooperação significam financiar
os países mais pobres, para que estes também possam viver como ricos.
O actual Presidente da República foi por assim dizer o bombo da
festa. Eduardo Paz Ferreira, professor catedrático de Direito na
Universidade de Lisboa, tem a certeza de que os portugueses, apesar de
terem votado duas vezes seguidas em Cavaco da Silva para a Presidência
(e uma maioria relativa e duas absolutas em eleições legislativas),
“sabem bem que não querem um Presidente enfeudado a interesses
financeiros e partidários”; querem um Presidente firme e interventivo
que “não aceite que [o governo] continue a dividir os portugueses, a
criar ódio entre gerações”. Ódio entre gerações? Onde se vê? O que o
atesta? Do que se ouve, vê e lê, nunca entre estas houve tanta
entreajuda.
Paulo Morais, da Associação Cívica Transparência e Integridade, não
está com meias medidas. Já que o PSD não cumpre o programa eleitoral,
coisa que para ele com fácil e rápido consenso se estabelece, deve ser
punido pelo PR com a demissão. Ou então deve o PR demitir-se a si
próprio, “cumpr[indo]-nos a nós fazer cumprir a Constituição”. Já
Talleyrand dizia que o excesso de zelo dá asneira. “Nós”, quem?
Certamente não o «Congresso da Cidadania». A Constituição não prevê que
“nós” sejamos o garante da sua observância, remetendo essa incumbência
para o próprio Presidente da República e o Tribunal Constitucional.
De todos os cidadãos, o mais contundente e desempoeirado foi Vasco
Lourenço: a coisa resolve-se com “um estrondoso murro na mesa”.
Precisamos de um Presidente que “garanta o regular funcionamento das
instituições”, que pelos vistos estão a funcionar irregularmente; de
um candidato que exonere o governo mal este incumpra o programa
eleitoral, ao contrário do que Cavaco Silva tem feito, que em relação ao
actual, “por mais que este tenha perdido a sua legitimidade”, persiste
em não se intrometer. O capitão de Abril dixit: a maioria não
possui legitimidade! Apenas sobra a pergunta: quem estaria do lado de lá
da mesa esmurrada por Vasco Lourenço? Cavaco Silva ou Passos Coelho,
eleitos por sufrágio universal directo?
Tudo isto é extraordinário, mas não surpreendente. Nenhum destes
senhores se deu ao cuidado de verificar a cronologia dos acontecimentos
desde o pedido de demissão de José Sócrates anunciado em 23 de Março de
2011, e menos se deu ao trabalho de tresler o programa eleitoral do PSD
apresentado em 8 de Maio e o programa de governo da coligação empossada a
21 de Junho. Relembremos só mais duas ou três datas: a 6 de Abril, o
ministro das Finanças de Sócrates, Teixeira dos Santos, anuncia ao País a
iminente bancarrota do Estado. Em meados de Abril, a Troika aterra na
Portela, chamada pelo Partido Socialista, e a 17 de Maio o memorandum de entendimento é assinado pelo PS, que o negociou, e pelo PSD e CDS, que o herdaram.
Logo ao princípio promete-se no programa eleitoral do PSD um
“Programa de ajustamento macro-económico” de que consta: “reequilibrar
as contas públicas” (i.e., atacar o deficit e a dívida); “criar
condições de sustentabilidade das Finanças Públicas”; “reduzir o deficit
externo”. Além do anúncio pode também ler-se um aviso: “As Finanças
Públicas na próxima legislatura serão fortemente condicionadas pelo
descalabro nas contas públicas nos últimos anos” (o programa eleitoral
não passa da tradução/adaptação da moção de estratégia apresentada por
Passos no Congresso do PSD de Abril de 2010).
Quanto ao programa de
governo, é uma consequência inevitável de quinze anos de “generosidade”
socialista, incluindo os seis anos de esbanjamento do governo Sócrates.
Lá se pode ler: “O pedido de ajuda externa, e os termos em que foi
concedido pelas instituições internacionais, constitui o ponto de partida fundamental para a reformulação das nossas finanças públicas.”
E a seguir vem o compromisso decorrente das condições da ajuda
negociadas pelo PS: “O governo garante o cumprimento atento e rigoroso
do memorando de entendimento [… com vistas ao] “regresso do Estado aos
mercados financeiros”, o que obriga a “austeridade na despesa do Estado”. Só os incautos foram apanhados de surpresa.
E quanto a legitimidade estamos conversados: a Eurosondagem de
Fevereiro dava a coligação em empate técnico com o PS, no que toca a
mandatos (as percentagens eram de 35% versus 37,5%, respectivamente). Em
Março, devido à questão dos pagamentos de Passos à Segurança Social, e
num contexto de não-coligação, a Eurosondagem atribuía ao PSD 25,2% das
intenções de voto (perdera 1,5%), e ao CDS 8,1% (subira 1,2%); os dois
partidos somados (o que não é o mesmo que considerá-los a concorrer em
coligação), obtinham 33,3% dos votos, contra 38,1% para o PS – que
mantém praticamente o mesmo score de Fevereiro (subiu apenas 6 décimas).
Quem ouvisse os congressistas falar, diria que Portugal inteiro estava
erguido como um Hércules contra o governo. Mas não está, como se vê – a
menos que o “povo de direita” preste menos do que o “povo de
esquerda”.
É extraordinário que tanta gente, que se quer responsável e
tem ambições de poder, esqueça estes “pormenores”.
16/03/15
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